Direito Canônico: serviço à justiça, à verdade e à caridade
Cardeal Odilo Pedro Scherer
No dia 26 de fevereiro passado, a Sé Apostólica, por decreto do cardeal Zenon Grocholewski, Prefeito da Congregação para a Educação Católica, aprovou e erigiu a Faculdade de Direito Canônico “São Paulo Apóstolo”, da arquidiocese de São Paulo. Na mesma ocasião, também aprovou “ad experimentum, os seus Estatutos.
Durante quase 15 anos, já existia em São Paulo o Instituto de Direito Canônico “Padre Dr. Giuseppe Benito Pegoraro”, que chegou a ser agregado à Pontifícia Universidade Lateranense de Roma e através dela conferia até mesmo títulos de mestrado e doutorado em Direito Canônico.
Com esta decisão, a Santa Sé elevou o Instituto à condição de Faculdade eclesiástica autônoma, dando-lhe competência para conferir esses altos graus e títulos acadêmicos em seu próprio nome. A nova Faculdade rege-se pelo seu estatuto e pela legislação da Igreja, pertinente às instituições acadêmicas eclesiásticas, como as Universidades Católicas e os Institutos e Faculdades de Teologia.
A nova Faculdade foi instalada no dia 07 de abril passado, com solene Ato Acadêmico, que contou com a presença do Núncio Apostólico no Brasil, Dom Giovanni d’Aniello. Trata-se da primeira do gênero no Brasil e a segunda, na área de língua portuguesa; em Portugal existe mais uma. Em toda a América Latina, existem apenas outras duas congêneres.
A Faculdade oferece novas possibilidades para a formação qualificada no Direito eclesiástico para todos os interessados, principalmente para quem presta seu serviço à Igreja. De fato, enquanto organização religiosa, a Igreja Católica possui seu próprio Código de Direito, de origens bem remotas, que vem sendo reformado de tempos em tempos para adequar-se às novas situações da Igreja ao logo da história e aos diversos contextos culturais. A última grande reforma aconteceu após o Concílio Vaticano II e o atual Código de Direito Canônico foi promulgado pelo papa João Paulo II em 25 de janeiro de 1983.
Este Código espelha bem a imagem da Igreja, presente no Concílio Vaticano II, cujos elementos essenciais são: a compreensão da própria Igreja como “povo de Deus”, cujos membros têm a mesma dignidade fundamental e participam, de modos diversos, da missão de Jesus Cristo ao longo da história; a autoridade hierárquica, entendida como serviço; o princípio da “comunhão”, que rege as relações entre os vários membros e os diversos graus de responsabilidade na organização interna e na vida eclesial.
A finalidade do Direito Canônico é eminentemente pastoral e isto significa que ele traduz para a organização e a vida da Igreja, para as relações entre as pessoas e instituições que a integram, aquilo que decorre da própria natureza e da razão de ser da Igreja. Seria equivocado achar que se trata de burocracia inútil, ou de legalismo farisaico, contrário à liberdade dos filhos de Deus. Como qualquer instituição humana, a Igreja também possui normas para assegurar o seu verdadeiro bem. Vale recordar que, onde não há Direito, acabam sendo negados os direitos.
O exercício da atividade judiciária, enquanto aplicação do Direito, visa assegurar a justiça e o verdadeiro bem dos fieis e da própria Igreja, enquanto Instituição. Não é sem motivo que o último cânone do Código recorda, justamente, a lei suprema (“suprema lex”) da Igreja: a salvação das almas (cf. cân. 1752).
A nova Faculdade de Direito Canônico de São Paulo deverá preparar servidores da justiça eclesiástica e do exercício competente da atividade judiciária para assegurar ao povo de Deus a justiça, na verdade e na caridade. Bento XVI referiu-se, de maneira primorosa, à relação necessária entre justiça, verdade e caridade, no discurso feito aos membros do Tribunal da Rota Romana, na abertura do ano judiciário da Sé Apostólica, em 29.01.2010.
O Direito, antes de tudo, está a serviço da justiça. Por isso, na prática judiciária esta relação fundamental não pode ser deixada em segundo plano e, menos ainda, abafada; o processo e a sentença precisam ser a expressão dessa relação primária do Direito com a justiça, a cujo serviço estão orientados. O recurso a toda sorte de artifícios formais, para burlar a norma ou para a obstrução da justiça, leva à distorção do Direito.
Mas a justiça não seria autêntica, se não estivesse afinada com a verdade. Sem respeito à verdade, não há justiça verdadeira. A verdade, às vezes, pode doer, mas ela liberta. O Direito ficaria desvirtuado se, reduzido a mero instrumento técnico, se prestasse à afirmação de todo tipo de interesse subjetivo, mesmo sem fundamento na verdade. É necessário que a aplicação do Direito ande sempre de mãos dadas com a verdade.
Enfim, quem administra a justiça não pode prescindir da caridade; esta não se contrapõe à justiça, nem à verdade. Poderia parecer contraditório, mas a inspiração última do Direito eclesiástico não é a justiça fria e cega, mas a justiça com o coração. Deus é justo e misericordioso. O amor a Deus e ao próximo deve iluminar toda atividade judiciária, mesmo aquela, aparentemente, apenas técnica e burocrática.
A esse respeito, ensina ainda o papa Bento XVI na Encíclica Caritas in Veritate (n. 6): ”a atenção à caridade ajudará a lembrar sempre que estamos diante de pessoas marcadas por problemas e sofrimentos. Também no campo específico do serviço judiciário, vale o princípio, segundo o qual ‘a caridade vai além da justiça’”.
Contudo, não se pode deixar de afirmar que toda obra de caridade autêntica requer uma referência necessária à justiça. Quem ama com caridade os outros, é justo para com eles, acima de tudo. A justiça não é contrária à caridade, mas é inseparável dela e intrínseca à caridade.