Economia e Vida (IX): condição humana e a esperança ilusória

Jung Mo Sung

No artigo anterior defendi a idéia (para muitos, no mínimo, estranha) de que a busca de superação de todos os conflitos e tensões entre grupos econômicos e sociais, países, religiões e culturas é uma tentação perigosa, pois isso implica em impor a cosmovisão, os interesses e a cultura de um único grupo sobre o restante da população mundial. Em outras palavras, a imposição de uma “paz imperial”. E contra a “paz imperial”, a alternativa não é uma “paz imperial benevolente” (como de ditadores/reis bons), mas aceitação da nossa ambigüidade e contradições humanas sociais como a condição humana e como valores sociais a serem preservados. Só assim grupos e culturas diferentes poderão ter o seu lugar devido na sociedade global.

Estamos tão acostumados com a tese de que devemos lutar por uma paz mundial, entendida como a superação de todos os tipos de conflitos, e por uma economia justa e fraterna, pensada como o fim de todos os tipos de concorrências, tensões e desigualdades, que o que estou propondo aqui soa como a aceitação das lógicas de dominação. A tese que estou propondo para reflexão é a de que esse tipo de pensamento de “paz universal”, por mais atraente que seja, é uma reprodução da lógica imperial, que aparece, por ex., na “Pax Romana” e no projeto expansionista da Europa Ocidental a partir do século XVI.

Há um consenso entre os críticos do atual capitalismo global de que, para superarmos a nossa crise social e ecológica, devemos superar o paradigma da modernidade que está na base da atual civilização. Estou completamente de acordo. O que estou argumentando é que a proposta de mudar o princípio de “livre concorrência” no e do mercado que rege o atual capitalismo pelo princípio da solidariedade/compaixão ou da “comunhão entre todos os seres humanos e desses com natureza” não é uma proposta que supera o paradigma da civilização moderna Ocidental. Parece, mas não é. Pois, o que há é somente a mudança do conteúdo do único princípio que deve reger a vida humana e o sistema social. No lugar da proposta de único princípio de livre concorrência no mercado, a solidariedade ou a comunhão como o único novo princípio. A lógica de fundo permanece: um único princípio organizativo para toda a sociedade e para todos os aspectos da vida.

É claro que essa última proposta é bastante sedutora e desejável, mas o problema é que nós seres humanos não somos assim. Nem somos tão puramente solidários ou compassivos, e nem temos a capacidade de conhecermos todos os elementos da divisão social do trabalho para podermos coordenar e planejar conscientemente todos os aspectos da vida econômica. E sem a solução alternativa para a coordenação da divisão social do trabalho (tema tratado nos artigos anteriores), as boas intenções individuais e suas ações econômicas pressupõem a coordenação inconsciente do mercado. E caímos de volta à tese neoliberal de que cada um deve viver a sua vida e deixar ao mercado a tarefa da coordenação da divisão social do trabalho.

Eu tenho insistido nesses dois temas, a coordenação da divisão social do trabalho e a condição humana, porque são dois dos principais “nós” na elaboração de uma alternativa para o sistema capitalista global. Propostas belas, agradáveis aos nossos desejos, mas que (a) pressupõem um ser humano que transcendeu a condição humana (e por isso não é mais humano), e (b) não indicam o modo alternativo de como coordenar bilhões de decisões e ações que ocorrem nos processos de produção, distribuição e consumo que compõem a economia global hoje são propostas bem intencionadas, mas ilusórias. Essas propostas podem satisfazer algum tipo de desejo dos grupos que anunciam e dos muitos que consumem esses tipos de discursos. Aliás, o que não falta no mercado hoje é o consumo desse tipo de “discursos libertadores ilusórios”. O que prova que o mercado capitalista continua com a capacidade de transformar quase tudo, mesmo discursos aparentemente anticapitalistas em mercadorias, especialmente para a classe média.

Eu penso que precisamos superar mais radicalmente a civilização Ocidental moderna e pensar a nova sociedade em termos de vários princípios em tensão permanente e assumir a nossa condição humana. A concorrência econômica (que gera um tipo de eficiência) em tensão com as metas sociais baseadas no princípio da solidariedade (que gera sustentabilidade social); a lógica do mercado em tensão com o papel indutor, regulador e fiscalizador do Estado; a sociedade civil com a sua diversidade cultural em tensão com as lógicas do mercado e a lógica da acumulação do poder do Estado; as diferentes religiões com suas visões conflitantes convivendo em tensão e diálogo na sociedade global…

Como escrevi no artigo anterior, a busca do fim do conflito e tensão exige uma luta mortal contra o “outro” que pensa diferente, e que nunca vai ser igual a mim, e a negação da própria condição humana. A única forma de criar uma alternativa à “paz imperial capitalista” e possibilitar a vida digna de todos/as é criar uma nova economia, uma nova política e uma nova sociedade onde os conflitos aceitáveis (aqueles que não buscam a morte do outro) e as tensões entre as várias lógicas e culturas que compõe a sociedade sejam vistas como saudáveis. (a continuar)