Economia e Vida (VIII): ambigüidade e conflito como valores sociais

Jung Mo Sung

Eu terminei o artigo anterior para afirmando que devemos aceitar que a ambiguidade e contradição são partes da condição humana e que devemos desistir de “soluções puras”. Isto é, sair da lógica da razão moderna ocidental que propõe sempre um único princípio organizativo para a economia, a sociedade e a vida, assim como propõe que uma única cultura seja assumida como a universal, uma só religião (seja o cristianismo, o islamismo,…, ou uma nova religião resultado da união de todas as religiões) que seja universal, capaz de colocar todos os povos e culturas diferentes dentro dela, etc.

É este tipo de racionalidade que explica porque os neoliberais propõem a solução do “mercado puro, total” -todos os aspectos da economia e também da vida social dirigido pela lógica do mercado- e reduzem o ser humano ao “homem econômico” para “purificá-lo” e retirar a ambigüidade humana; e o socialismo do tipo soviético buscou colocar toda a vida econômica, política e social sob o controle e planejamento do Estado e reduziu o ser humano ao “homem político”; e há hoje setores do cristianismo de libertação propondo que a solidariedade ou a harmonia entre os seres humanos e esses com a natureza deve ser a única lógica a dirigir a economia e a vida social, e assim propõe um “novo ser humano” sem ambigüidades e sem interesses e desejos conflitivos. Apesar de serem propostas muito diferentes, essas três compartilham do mesmo princípio de que deve haver somente um único princípio organizador, seja na economia, política, na sociedade e até mesmo no campo religioso, e que a ambigüidade humana deve ser superada.

Para se ter uma idéia da influência desse princípio da razão moderna ocidental em lugares menos suspeitos, quero trazer aqui uma expressão que foi muito forte no cristianismo de libertação nas décadas de 1980-90: “as CEBs são (ou devem ser) o novo jeito de ser de toda a Igreja”. Isto é, toda a Igreja deveria ter um único princípio organizativo, as CEBs, enquanto os setores hegemônicos do Vaticano queriam e ainda querem impor o modelo romano para toda a Igreja. É um conflito entre partes que assumem o mesmo princípio como verdadeiro.

Para superarmos essa lógica de um único princípio e de uma solução definitiva que supere todas as ambigüidades e contradições da condição humana, precisamos passar a ver a ambigüidade e conflito como valores sociais e humanos. Para muitos essa afirmação pode soar como muito estranho ou até herético. Mas, eu penso que, na nossa reflexão sobre economia e vida, é fundamental discutirmos e revermos essa questão.

Para isso, precisamos começar com uma rápida reflexão sobre a condição humana. Os seres humanos são seres com capacidade de compreender, interpretar e criar o seu mundo utilizando-se dos instrumentos que a sua cultura oferece. Todos nós sabemos que culturas diferentes produzem explicações e soluções diferentes para os problemas inerentes a vida humana, como por ex., como produzir e distribuir os bens necessários para viver, como organizar a sociedade e o sistema de leis e de valores morais, como dar sentido a vida, como explicar e legitimar as diferenças sociais e individuais, etc. Pessoas de culturas diferentes compreendem, explicam e dão respostas diferentes para os mesmos problemas ou fatos sociais. Isto é, quando pessoas ou grupos de culturas diferentes se interagem, sempre haverá conflito de interpretações sobre a realidade e também conflito de interesses.

Quando o conflito é visto como um mal, a solução buscada é o conflito que acabe com os conflitos, isto é a vitória de um lado e a imposição da versão do mais forte sobre todos os envolvidos – gerando assim uma aparente paz e harmonia. Se o conflito é visto como parte da condição humana e um valor social, busca-se formas de “diálogos possíveis”, que serão marcados por conflitos e ambigüidades, mas agora aceitos como parte da convivência humana e da busca de uma solução que não passe pela destruição ou submissão do outro. Não há diálogo sem nenhum tipo de conflito ou ambigüidade; e quando não há ambigüidade ou conflito, o diálogo não é necessário.

Na medida em que grupos humanos precisam de uma cultura concreta e não de “a cultura universal abstrata” para viver a sua vida, não é possível e nem desejável que a diversidade cultural (e com isso os conflitos) desapareça. O que significa, por ex., que a diversidade religiosa, que produz conflitos (pelo menos de interpretações) entre as religiões se manterá e deverá ser visto como um valor. Um mundo sem conflitos culturais e religiosos seria um mundo em que um grupo social conseguiu impor sobre todo o mundo os seus interesses, o seu modo de ver e de organizar o mundo e o sentido da vida. Um mundo que viveria uma “paz imperial”.

Para superarmos a atual “paz imperial global”, precisamos assumir a ambigüidade humana, as contradições humanas e sociais, paradoxos e a tensão entre diversos princípios organizativos como valores sociais.

Nesse sentido, Milton Schwantes nos ensina que a dispersão dos camponeses, na narrativa da Torre de Babel, que resultou na diversidade lingüística e, portanto, cultural, não foi um castigo, mas uma ação libertadora de Deus contra a tentativa do “império” de impor, sob o poder militar expresso na Torre, a sua língua/cultura como a única. (A continuar)