Em nome do Pai
Fernando Altemeyer Junior
O uso desta expressão é tão automático em nossos lábios que nem percebemos que na modernidade tornara-se uma questão. Alguns chegam a afirmar que vivemos hoje uma “sociedade sem pai”, pois a noção tradicional de pai está em crise (vide os famosos ‘testes de paternidade’) e a própria paternidade divina é amedrontadora. Filósofos como Karl Marx, Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud criticaram a imagem de Deus Pai afirmando que precisa ser superada, já que veio marcada por três defeitos congênitos: é um desejo efêmero; é uma projeção falsa, e, uma alienação da verdadeira vocação do ser humano. Dizem que o cristianismo nos apresentou um Pai que é um patrão que explora (Marx); alguém que nos faz recusar a nossa liberdade e nos fragiliza em ações perversas contra a felicidade e autonomia do humano (Nietzsche). Somos acusados de mascarar o sentimento de culpa e a violência original e matar em nome do Deus-pai, pois nos recusamos a confrontar a neurose edipiana (Freud). Poderíamos afirmar que estes discípulos do ateísmo moderno se equivocaram. Não é esta correta imagem de nosso Deus e Pai. Falsificaram Deus e criaram uma caricatura digna de pena.
Podemos, entretanto, levar a sério a crítica e mesmo que esta seja injusta para com Deus e seu Filho Jesus, talvez seja correta pela forma que os cristãos apresentaram a paternidade divina no decorrer da história. Quem sabe este trio critique o que falamos errado da verdadeira paternidade divina. Quiçá a dura crítica dos materialistas nos permita depurar a noção de paternidade. E assim reencontrar uma linguagem nova para falar de Deus em tempos de abandono da fraternidade. Quem poderia dizer que conhece ao Pai comum se desconhece ao seu próprio irmão? Diante da trilogia desejo-ilusão-alienação deveríamos buscar outra expressão do Deus que é Pai de Jesus. E professar outra trilogia: proximidade, herança e aliança. Este exercício catequético nos fará redescobrir uma nova imagem do humano reflexo e espelho da imagem paterna de Deus. Para isso devemos rever o que dizemos e fazemos em nome do Pai?
Os cristãos colocam a mão e tocam a testa ao fazer o sinal da cruz. Há um indicativo simbólico claro de que tudo começa e principia com o Pai. Nosso pensar nasce e vive de Deus. Ao tocar a testa indicamos que não somos uns cabeças-duras, mas queremos mentes abertas ao infinito, pois seres pensantes que reconhecem que há um Criador e um início divino.
Em termos genéticos, há sempre um vínculo do homem-pai que fecunda a mulher-mãe para que possamos existir. O pai que nos ama na terra será exemplo daquele Deus que nos ama ainda mais nos céus. Pai nosso que estás nos céus, ensinará Jesus. O mesmo Jesus que inovará a linguagem sobre Deus. O Antigo Testamento usou quinze vezes o nome do Pai para dizer algo de Deus, de forma indireta e coletiva. Caberá a Jesus introduzir na linguagem teológica a expressão nova de sua intimidade como Filho único de Deus. Os Evangelhos serão abundantes em invocar e propor Deus como Abba, palavra aramaica do mundo infantil e que podemos traduzir por paizinho querido. É o balbuciar da criança correndo para os braços de seu pai dizendo a palavra que vem do coração. Esta ousadia de Jesus, como diz Leonardo Boff foi por ele dita 170 vezes nos relatos evangélicos. Jesus se “dirige a Deus como uma criancinha a seu pai, com a mesma simplicidade íntima, o mesmo abandono confiante (L. Boff, O Pai-nosso, a oração da libertação integral, Vozes, p.40)”. Deus é Pai quando nos consola em nosso choro e fragilidade. Deus é pai quando abre seus braços para o afago essencial. Deus é pai quando ensina, alerta e corrige. Quando abençoa nosso amanhecer e santifica nosso anoitecer.
Sabemos que somos filhos no Filho. E ao ser irmãos de Jesus tornamo-nos filhos adotivos de Deus. Percebemos de qual útero nascemos e de qual sopro de vida vivemos. O homem não vive só de pão, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus (Mateus 4,4). Deus Pai se apresenta como o Criador de tudo e de todos. Onipotente, mas não eterna ausência. Todo-poderoso e todo-compassivo. Aquele que tudo fez e que tudo-pode, mas também Aquele que tudo tem e de tudo cuida. É na memória do Pai que nos precede e de onde tudo provem que existimos, cremos e esperamos. Ao conhecer a paternidade de Deus, conhecemos a raiz de onde brota suave a seiva de nosso existir. Deus Pai é a memória mais escondida, o íntimo mais íntimo, o segredo mais escondido de cada filho. Dele viemos e para ele voltaremos. O paraíso, como lembra frei Carlos Mesters, é saudade, mas também esperança. Assim sempre devemos rezar ao Pai pelo Filho no Espírito. Olhando para trás e para frente. Dirigir todo coração e todo entendimento ao Pai-Nosso que está nos céus. E santificar seu Nome reconhecendo a ligação umbilical com esse Pai maternal.