Entrevista de Maria Clara Bingemer: O rosto feminino de Deus
IHU – Unisinos
“A pós-modernidade resgatou a transcendência que a modernidade havia tentado banir do horizonte humano, mas resgatou uma transcendência sem absolutos”, explica a teóloga brasileira Maria Clara Bingemer, na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line. Ela comenta as diversas formas de viver a experiência religiosa na modernidade e na pós-modernidade. Também fala sobre as contribuições cristológicas dadas pelos estudos de gênero. “A Cristologia é percebida inclusive por muitas mulheres como sendo a doutrina da tradição cristã que mais freqüentemente foi usada contra elas”, disse.
IHU On-Line – Quem é Jesus? O que destacaria d’Ele, baseada na sua própria reflexão teológica?
Maria Clara Bingemer – Antes de tudo, Jesus é uma pessoa humana. Creio que é esse o caminho que seguem as primeiras testemunhas e que também nós, cristãos, somos chamados a seguir. Jesus (que) é (era) homem, (que) é (era) irmão, (que) é (era) Messias (Cristo),(que) é Filho, é Deus.
Dizer simplesmente “Jesus é Deus”, sem supor a humanidade do mesmo Jesus, pode ser herético, pois significa negar todo o processo da revelação e da salvação. Se não fizermos nenhuma distinção; se não reconhecermos nenhuma alteridade, nenhuma diferença entre as pessoas divinas; se afirmarmos equivalente e simetricamente “Jesus é Deus” assim como afirmamos “O Pai é Deus”, acabaremos por afirmar e identificar “Jesus é o Pai”, e acabaremos comprometendo nosso entendimento do Novo Testamento e a revelação que faz da pessoa de Jesus. Assim, essa é minha experiência com a pessoa de Jesus. Uma experiência de encontro. Só depois virá a reflexão teológica, que faz perceber que aquele homem tem um comportamento essencialmente fraterno com toda e qualquer pessoa que cruza seu caminho. Que nele se encontram os gestos e os fatos que se espera da chegada do Messias. Que ele tem com Deus uma relação única e singular, que ninguém mais tem. Isso é o que faz possível a experiência de vê-lo morto e experimentá-lo ressuscitado e vivo no meio de nós. E proclamar, então, que ele é o Filho de Deus e Deus mesmo.
Para chegar à confissão de fé na divindade de Jesus Cristo, tudo tem que começar em sua humanidade. É por isso que Deus se fez carne em Jesus de Nazaré. Para que nós possamos, a partir do núcleo de nossa humanidade, encontrá-lo e relacionarmo-nos com ele.
IHU On-Line – Como o feminismo ajuda a entender a pessoa de Jesus? O que seria uma cristologia feminista?
Maria Clara Bingemer – Prefiro a palavra “reflexão de gênero” do que “feminismo”. Ou seja, a consciência feita reflexão de que todo conhecimento que se elabora necessariamente é situado, tanto no contexto histórico e cultural onde se vive quanto no gênero ao qual pertencemos. Por isso, o fato de ser mulher e ter disso consciência, obriga a levantar sobre Jesus um tipo de reflexão a partir disso. Uma reflexão teológica, portanto, que os homens não podem fazer.
Entre os diferentes tratados da Teologia que buscam repensar-se a partir da perspectiva da mulher, a Cristologia é talvez um dos mais importantes e, certamente, dos mais polêmicos. Porque se, por um lado, Jesus Cristo é o centro da fé e da teologia cristãs, o ponto de convergência e de possibilidade de acesso da pessoa humana – homem e mulher – à salvação oferecida pelo Deus vivo, e, portanto, à vida em plenitude que é esse Deus em si mesmo, por outro lado, para muitas mulheres, a masculinidade de Jesus – ou seja, o fato histórico teológico de que o Deus de toda glória e majestade se haja encarnado na pessoa de um varão da Palestina há 2.000 anos -, não está isenta de problemas.
Muitas teólogas feministas, em seu intento de pensar o mistério revelado desde sua perspectiva de seres humanos do sexo feminino, encontraram um obstáculo na pessoa de Jesus. A centralidade – o senhorio – deste Deus masculino lhes soava como havendo sido empregado doutrinária, política, psicológica e estruturalmente ao serviço de uma fraternidade de irmãos e padres – a Igreja -, cujos membros femininos foram sempre contados como auxiliares ou subalternos ou, em casos especiais, percebidos como muito semelhantes aos homens para que elas pudessem ser relativamente bem aceitas em sua companhia.
Cristologia e questões de gênero
A Cristologia é percebida, inclusive, por muitas mulheres como sendo a doutrina da tradição cristã que mais freqüentemente foi usada contra elas. Algumas afirmações de grandes mestres da teologia, como Agostinho de Hipona e, na alta escolástica, e Tomás de Aquino, foram interpretadas no sentido de que o macho é o sexo genérico da espécie humana. Somente o macho representa a plenitude do potencial humano, enquanto a mulher, por natureza, é deficiente física, moral e mentalmente. Esta concepção leva a afirmar que não só depois da queda original, mas também na essência original das coisas, a natureza deficiente da mulher a confinou a uma posição subserviente na ordem social. Ela é, por natureza, subjugada. Portanto, a encarnação do Logos de Deus em um macho não seria um acidente histórico, mas uma necessidade ontológica. O macho representa a totalidade da natureza humana, em si mesmo e como cabeça da mulher. Ele é a totalidade da imagem de Deus, enquanto a mulher por si mesma não representa a imagem de Deus e não tem a totalidade da humanidade.
Portanto, a cristologia feita pela mulher levanta as seguintes perguntas: se o cristianismo é fundamentalmente seguimento e identificação de e com Jesus Cristo, se nisto consiste a salvação e a plena realização dos desejos do coração humano, como pode a mulher encontrar seu lugar aí, em plena fidelidade a sua condição feminina? Como encontrar o caminho para sentir-se cidadã plena no Reino proposto por Jesus? Como encontrar seu espaço na Revelação de um Deus com características masculinas e numa comunidade de estrutura e corte essencialmente masculinos formada por seus seguidores?
IHU On-Line – O que caracterizaria sentir Deus de um modo feminino?
Maria Clara Bingemer- Foi Jesus quem nos ensinou a chamar a Deus de Pai. E, certamente, ele o fez seguindo os modelos culturais da época, que falavam masculinamente de Deus. Diferentemente de outros povos que tinham também deusas, o povo de Israel sempre se referiu a Javé no masculino. Mas como falar de Deus-Pai nessa nova linguagem? Primeiramente, é preciso lembrar que Deus-Pai não é pai como nossos pais humanos, tão marcados por pecados e imperfeições. Além do mais, o pai entra com apenas uma parcela na fonte e origem da vida de uma criança. Quando dizemos Deus-Pai, já estamos afirmando a paternidade perfeita do Pai, uma paternidade que inclui toda a dignidade e beleza e generosidade, tanto da paternidade quanto da maternidade. Em si, quando dizemos Deus-Pai, já estamos pensando e falando num Deus que também é Mãe. A geração eterna do Filho pelo Pai é tão plena e perfeita que num único Filho resplandece toda ternura materna e todo vigor paterno de seu amor.
Por outro lado, não se pode cair na tentação oposta, e chamá-lo somente de Deus-Mãe. Também nossas mães humanas são marcadas por imperfeições e pecados, e nenhuma delas consegue ser sozinha a fonte da vida de seus filhos. Além disso, em nossa linguagem católica, a palavra “Mãe” é específica para se falar de Maria. Estaríamos correndo um sério risco de promover confusões entre Maria (que não é deusa, mas criatura de Deus) e Deus.
A maternidade de Deus e de Jesus
Não se pode, porém, negar a necessidade e urgência de apresentar a dimensão feminina de Deus. A própria Bíblia fala de Deus-Pai em linguagem feminina. Consola o povo, como a mãe consola o filho (Is 66,13). Compara-se à mãe que nunca abandona o filho (Is 49,15). No Concílio Regional de Toledo, no ano de 675, se afirma em linguagem feminina que “o Filho foi gerado do útero do Pai”. O Papa João Paulo I, o papa-sorriso, disse: “Deus é Pai e Mãe”.
Porém, não se pode aplicar a denominação feminina apenas à primeira pessoa da Santíssima Trindade, ou seja, à pessoa do Pai. O amor de Deus pela humanidade, que flui da economia trinitária, é a imagem e forma da realidade mais funda de Deus. O amor assim misteriosamente entendido é inclusivo, não deixando fora de si o pobre ou os pequenos deste mundo.
A reciprocidade trinitária é matriz para a reciprocidade inter-humana, primeiro e último elemento de tudo que existe. Da mesma maneira que o Filho e o Espírito Santo constituem referências de um Princípio sem princípio, um Mistério absoluto – o Pai -, assim também o homem e a mulher são constituídos através da referência a um dinamismo que os transcende e constitui o mistério do ser humano.
Cada pessoa da Trindade mostra uma harmonização de características masculinas e femininas. Trata-se de uma comunidade de amor que se revelou também no feminino, assim como no masculino.
IHU On-Line – Que características adquire a experiência religiosa na modernidade?
Maria Clara Bingemer – A experiência religiosa na modernidade passa pelo crivo do processo de secularização e o domínio da razão. Toda experiência e, inclusive a experiência religiosa, nos tempos modernos deve passar pela bênção da razão. A crise dessa razão potente que a tudo explica e a tudo justifica traz consigo o advento de um novo tempo juntamente com uma nova maneira de ver as coisas. Ao mesmo tempo, com o advento da pós-modernidade, começa uma nova valorização da gratuidade, da contemplação, do sensível.
Não é mais valorizado apenas aquilo que passa pelo crivo da razão, mas também e muito especialmente aquilo que vai de encontro à afetividade e provoca a sensibilidade. A experiência religiosa irá encontrar aí uma maneira de ser e de existir que está mais de acordo ao perfil do homem e da mulher pós-modernos: sinto, logo existo. A cultura de sensações seduzidas, que caracteriza a pós-modernidade, irá marcar os tempos em que vivemos com a marca indelével da afetividade seduzida e sensibilizada. Apenas às vezes muito superficialmente.
Portanto, se a pura racionalidade, rígida e inflexível da modernidade, engessou a experiência religiosa e distanciou-a do viver das pessoas, por outro lado, a superficialidade e o “à flor da pele” da pós-modernidade corre o risco de torná-la fluida e líquida, como líquidos são os tempos hiper-modernos. A pós-modernidade resgatou a transcendência que a modernidade havia tentado banir do horizonte humano, mas resgatou uma transcendência sem absolutos.
IHU On-Line – Quais são os aspectos mais relevantes das pesquisas científicas sobre o Jesus histórico?
Maria Clara Bingemer – As pesquisas sobre o Jesus histórico trazem, sobretudo, um aspecto relevante: abordar o mistério de Jesus Cristo a partir da história, da humanidade, a partir de baixo, em um movimento ascendente. Uma cristologia ascendente parte do humano, ou seja, trata-se de uma cristologia que parte “de baixo”. Segundo este modo de aproximar-se do mistério cristológico, Jesus foi um homem singular e único. Irrepetível e absolutamente original, viveu a existência ameaçada e insegura de todo ser humano, comprometendo-se na mais radical obediência a Deus para libertar a humanidade, porque para isso havia sido enviado por seu Deus e Pai. Após realizar totalmente e até o fim o plano de Deus, foi por Deus ressuscitado e constituído Senhor e Cristo. Nesta perspectiva, estão necessariamente vinculadas a cristologia e a soteriologia, o mistério de Cristo e nossa salvação, já que uma não se pode compreender sem a outra. Além disso, esta perspectiva teológica tem a vantagem de que salva a cristologia de todo perigo de monofisismo ou de infiltrações míticas, sejam elas quais forem. Nesta cristologia, aparece claro que Jesus Cristo foi um homem inteiramente igual a todos os outros seres humanos, menos no pecado (Heb 4,15; cf. Fil 2,7-8).
A humanidade de Jesus
Por outra parte, nesta cristologia se explicam sem dificuldade toda uma série de afirmações que os evangelhos fazem sobre Jesus: dizem que ele aprendia (Lc 2,40.50), que sentia saudades e se surpreendia (Mt 8,10; Lc 7,9; Mc 6,6), que não sabia ou conhecia certas coisas (Mc 13,32), que tinha tentações (Mt 4,1-11; Mc 1,12-13; Lc 4,1-13; 22,28), que sofreu o medo diante da morte e do fracasso (Mt 26,38; Mc 14,34; Lc 22,43-45; Heb 5,7). Definitivamente, Jesus aparece nestes textos como alguém muito humano, a quem se pode seguir e a quem se pode tomar como modelo e desejar imitar. Igualmente, nesta interpretação, Jesus aparece como um judeu muito consciente de sua pertença ao povo eleito. Mais: aparece como alguém que se dá conta da verdadeira situação de seu povo, e se compromete até o fundo para libertar seus semelhantes das múltiplas cadeias e escravidões (morais, religiosas, humanas) em que estão aprisionados, por obediência a seu Pai , em quem ele vê o Deus libertador que se revelou no Antigo Testamento. Mas esta cristologia tem o inconveniente de que, ao menos em princípio, não explica suficientemente toda uma série de afirmações do Novo Testamento nas quais se fala da preexistência de Cristo e da consciência messiânica de Jesus, que aparece afirmada em alguns textos do Novo Testamento, especialmente o evangelho de João.
IHU On-Line – O que caracteriza o messianismo cristão? Como Jesus o viveu? Como o aspecto messiânico é vivido no cristianismo de hoje e quais as derivações dele?
Maria Clara Bingemer – A messianidade de Jesus é ponto fundamental da fé das primeiras comunidades cristãs. As comunidades cristãs declararam ser Jesus de Nazaré o Messias esperado, o que, em si mesmo, já é uma confissão de fé. O Messias e o carpinteiro Jesus que morreu crucificado pelos romanos são, então, a mesma pessoa, ou seja, o evangelista. Esse Messias é inseparavelmente o Filho de Deus. O evangelista nos dá a fórmula da fé: vincula a pessoa de Jesus a um certo quadro histórico: o do ambiente judaico que espera a vinda de um Messias, que clama pela Redenção.
A tendência da cristologia ascendente, hoje, nos permite afirmar que Jesus experimentou sua autoconsciência messiânica não em termos de um messianismo régio ou monárquico ou mesmo de uma condição de ser preexistente, mas de um chamado divino. O que caracteriza, portanto, o messianismo de Jesus é o fato de sentir-se eleito e enviado para realizar uma missão divina particular e obedecer estritamente ao chamado de Deus.
Nesse sentido, as ações e o ensinamento de Jesus mostram que ele se autocompreendia dentro de uma relação marcante com Deus seu Pai e investido de uma missão especial. O sofrimento e a morte, do mesmo modo que a esperança na ressurreição, foram assumidos como decorrência da obediência irrestrita à vontade do Pai. Essa vontade, necessariamente, contrariava a vontade daqueles que não aceitavam o messianismo de Jesus e sua ação libertadora e desejavam que a configuração do campo religioso judaico oficial permanecesse tal como estava antes de Jesus começar sua pregação. E, embora Jesus tentasse e pretendesse conservar em segredo a natureza da autoridade que o fazia tão especial, sua coerência e a força de seu carisma não deixaram de provocar indignação naqueles que desejavam esse carisma para poder ter maior influência sobre o povo e que, no entanto, não o tinham.
Messianismo sem poder nem reformismo político
Jesus não entende seu messianismo como uma atividade meramente política, de poder, mas sim de serviço, que incluirá a incompreensão, a rejeição e o sofrimento. O povo vê, sim, em Jesus um profeta que se dirige às dimensões religiosa e social do ser humano, mostrando-lhes o sentido da vida e a atitude correta a ter para com Deus e com os outros a fim de viver plenamente. Mas se afasta dele no momento em que compreende com certeza que ele não será nem pretenderá ser o reformador político que eles de alguma maneira esperam.
Jesus mostra que seu messianismo está relacionado com o serviço a Deus. Seu messianismo não é monárquico e triunfal. Do ponto de vista político, Jesus será rejeitado justamente pelas autoridades formadas pelos anciãos, sacerdotes e escribas, representantes das principais correntes do Sinédrio. São esses que o condenarão. O sonho de glória dos discípulos que esperavam participar de um poder terreno de Jesus é transtornado e frustrado pela realidade do sofrimento de Jesus.
Maria Clara Bingemer é professora do departamento de teologia da PUC-Rio e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da mesma universidade. Ela é graduada em Jornalismo, mestre em Teologia e doutora em Teologia Sistemática.