François Houtart: ‘…nunca houve tanta riqueza e tantos pobres como agora’
Foro Diamantino
Tradução: Adital
O sociólogo belga François Houtart (Bruxelas, 1925), uma das vozes mais radicais do movimento antiglobalização cristão, inaugurou o curso do Centro Mediterrâneo da Universidade de Granada ‘O caminho que estamos vivendo’, no qual participam destacados intelectuais, como Federico Mayor Zaragoza, Carlos Tablada, Joaquín Estefanía, José Vidal-Beneyto e Riccardo Petrella. Houtart, delegado especial do presidente da Assembléia Geral das Nações Unidas para a Reforma do sistema Financeiro e Monetário, fundador do Centro Tricontinental da Universidade Católica de Lovaina.
– Como vê a crise atual?
– Fala-se muito de crise financeira; porém, ela é um epifenômeno de um problema muito mais grave que é a lógica da organização econômica mundial. Há uma convergência de diversas crises: alimentar, energética, climática, social, humanitária, ecológica…
– Como será essa ‘sociedade do futuro’ da qual o senhor fala no curso?
– A sociedade do futuro tem que ser pós-capitalista e somente pode ser construída sobre quatro grandes eixos. Primeiro, uma relação de respeito e não de exploração com a natureza. Na prática, significa declarar a água e as sementes patrimônio universal e não permitir sua privatização. O segundo eixo é privilegiar o valor de uso sobre o valor de troca, o que significa que os produtos e os serviços teriam que ser desenvolvidos em função das necessidades e não do usufruto. Estamos em uma situação absurda: nunca houve tanta riqueza e tantos pobres. Para a acumulação do capital é mais interessante desenvolver de maneira espetacular 20% da população mundial do que produzir bens e serviços para os demais 80% que não têm poder de compra. O terceiro eixo é a democratização da sociedade, não somente no campo político, mas em todas as relações sociais coletivas: na economia, nas instituições da saúde, da educação, no esporte e na religião, entre homens e mulheres… E o quarto eixo é a multiculturalidade: a possibilidade de que todos os saberes, filosofias e religiões contribuam para a construção social coletiva. Até agora, identificamos desenvolvimento com ocidentalização e os saberes tradicionais têm sido marginalizados.
– Como acredita que será a transição de um sistema para outro?
– São necessários atores que construam uma nova relação de força -o qual não significa necessariamente violência-, porque o sistema não vai mudar por si mesmo. No século XIX e XX o ator que se opunha ao capitalismo era a classe operária; porém, hoje, com as mudanças no trabalho, com a debilidade das organizações operárias e com a globalização, os atores são todos os grupos sociais subalternos atingidos pela lei do capital: os camponeses sem terra, os indígenas, as mulheres, os estudantes… O novo ator histórico é global. Somente a convergência dessas lutas pode transformar as coisas. O problema é que são resistências um tanto isoladas. Para ter uma força real necessitam da dimensão política, e isso é ainda muito solto. Só na América Latina se vê os primeiros passos de alternativas que vão contra a lógica do sistema dominante: na Venezuela, na Bolívia, no Paraguai, no Equador… Por exemplo, foi a convergência de ONGs, movimentos sociais, igrejas e alguns governos que impediu o tratado de livre comércio entre EUA, Canadá e América Latina, e está tentando outro tipo de integração latinoamericana através da ALBA.
– O senhor afirma que é necessário construir o socialismo. Porém, que socialismo: o de Zapatero ou o de Fidel?
– O pós-capitalismo pode chamar-se socialismo; porém, deve ser definido por seu conteúdo. Do contrário, é uma palavra ambígua: pode ser Pol Pot, Stalín, Tony Blair… Para mim, o socialismo se define em função dos quatro eixos que citei anteriormente.
– Crê que Cuba é um bom exemplo de construção socialista?
– Cuba é um ensaio que tem tido êxitos -especialmente no plano da saúde, da educação, do esporte e da cultura-; porém, também teve o obstáculo da dominação da URSS durante vinte anos, que reorientou o modelo original e do qual Cuba está tentando sair desde o fim dos anos oitenta. Em Cuba, como nos demais países, a construção do socialismo teve que ser feita nas piores condições, guerras, embargos, a queda da URSS…
– O socialismo é incompatível com a democracia?
– Não, de nenhuma maneira. Porém, não podemos dizer que não existe democracia em Cuba. Esse é o argumento habitual dos ataques a Cuba. Há um desejo de mais democracia, mais agilidade, menos rigidez no sistema burocrático e político, mais participação, apesar de que lá existe muito mais democracia do que em qualquer outro país da América Latina… A forte reação do mundo capitalista teve como consequência em Cuba a rigidez do sistema, a militarização, para defender-se. Porém, não são as pressões do exterior que vão conseguir maior democratização em Cuba; ao contrário: quanto mais pressões, mais resistência.
– Crê que o triunfo de Barack Obama é um motivo para a esperança?
– Foi um sinal de esperança porque é a primeira vez que um negro ou um ‘quase negro’ chega ao poder em um país como os Estados Unidos. Isso, simbolicamente, é muito importante e assim foi sentido na África, na América Latina e nos EUA. Porém, daí a pensar que Obama não será o presidente de um império é outra coisa. Não somente pela força das estruturas, mas também porque ele é um homem do ‘stabilishment’. Tem posições mais abertas em relação a Kyoto e temos que aplaudi-lo; porém, no fundo, a lógica não mudou. Como dizem os cubanos: têm que acostumar-se a ter um imperador negro.
– A autoridade de Roma, o que resta da Teologia da Libertação depois de tantos anos de conservadorismo do vaticano?
– A Teologia da Libertação não está morta; porém, sim, sofreu um enorme golpe porque a instituição eclesiástica católica cortou todos os canais de difusão: seus teólogos foram eliminados de todas as faculdades e centros de pastoral controlados pela Santa Sé. Ao mesmo tempo, conheceu uma certa extensão temática nos últimos vinte anos: feminista, ecológica, dos povos indígenas… E, além disso, desenvolveu-se nas universidades leigas e nas comunidades de base (CEBs). Devemos confessar, no entanto, que sim, a política de restauração da autoridade de Roma tem sido muito negativa para esse projeto de pensamento e de ação.
– A sociedade espanhola é cada vez menos católica; porém, os bispos estão sempre em primeiro plano falando do aborto, da eutanásia, da investigação científica… Por quê?
– A cultura e a ética estão em plena evolução sobre esses e outros temas. O fato de que a hierarquia eclesiástica tenha tomado posições extremamente conservadoras e reacionárias frente a essa evolução choca com coisas que são consideradas de sentido comum, como a dignidade da vida, a dignidade da morte, o problema da limitação de nascimentos, etc… E essa imposição é notícia. A razão dessa atitude me parece muito ligada à concepção da autoridade eclesiástica, mais do que a uma questão de doutrina: quem sabe o façam com boa intenção; porém, é uma concepção totalmente equivocada do ser humano, um reducionismo aos fatores puramente biológicos, uma concepção puramente materialista que não considera a cultura, o que deveria ser o papel de uma instância religiosa.
– O senhor é sacerdote. Algum dia pensou em realizar seu trabalho intelectual fora da Igreja Católica?
– Praticamente é o que estou fazendo! Não estou fora do Evangelho, nem fora da igreja como Povo de Deus; porém, não estou em convergência com a instituição central, isso está claro.