Fraternidade e saúde pública
A CF/2012 põe o dedo numa das feridas sociais mais profundas deste país. É como se os pastores percorressem as longas filas do INSS, ouvissem os clamores de inúmeros doentes em busca de tratamento e sentissem suas “angústias e tristezas”, para usar a expressão do Concílio Ecumênico Vaticano II (Gaudium et Spes, nº 1). O Brasil é falho em termos de atendimento público, mas não em termos de leis relacionadas à saúde, como veremos adiante. Originalmente, “o sistema único de saúde brasileiro [SUS] tem uma concepção filosófica humanista-comunitária maravilhosa; é perfeita na teoria, mas na prática deixa muito a desejar, revelando-se um caos em termos de funcionamento” (Pe. Leo Pessini, in. Revista Vida Pastoral, nº 283, março-abril de 2012).
A declaração poderia estender-se a outras áreas sociais. Nas metáforas de Gilberto Freire, o Brasil sempre contou com uma dupla política, uma para a Casa Grande, outra para a Senzala: um sistema de educação para ricos, outro voltado aos pobres; um sistema de transporte para ricos, outro voltado aos pobres; um sistema de segurança para ricos, outro voltado aos pobres; um sistema de habitação para ricos, outro voltado aos pobres. Na pirâmide social, o andar de cima, histórica e estruturalmente, conta com um tratamento diferenciado. Para o andar de baixo, sobram os favores, as migalhas, tais como bolsa família, bolsa escola, minha casa minha gente, e assim por diante.
No caso da saúde, o contraste é mais estridente. Os gemidos que sobem das filas do INSS, dos corredores de postos de saúde e hospitais, além da falta de profissionais de saúde e das condições precárias oferecidas setores de baixa renda, tornam-se ensurdecedores diante dos privilégios reservados aos que podem arcar com os custos de um Plano de Saúde. Aliás, estes pagam três vezes: através dos impostos exorbitantes e da previdência social, como todos, acrescentando as prestações do dito plano. Mesmo assim, na hora da enfermidade, não está garantida uma coberta total.
E por falar em Planos de Saúde, vale salientar que todos eles em conjunto cobrem uma população de aproximadamente 40 milhões de pessoas, enquanto o SUS acaba sendo o “Plano de Saúde” de 150 milhões. Ou seja, numa população de 196 milhões, oito de cada dez brasileiros dependem do Sistema único de Saúde. Ainda em termos de comparação, uma consulta médica custa para o SUS cerca de R$ 7,00, ao passo que os diversos Planos de Saúde pagam ao redor de R4 80,00 por consulta. Evidente que os médicos migram em debandada para as unidades de saúde cobertas pelos planos. Concentram-se onde os ganhos são melhores!
Entretanto, não faltam normas para garantir o direito universal à saúde. Este consta, em primeiro lugar, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948); depois, de acordo com a Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988, artigo 196, “a saúde é direito de todos e dever do Estado”; por fim, a Lei Orgânica da Saúde, nº 8.080/1990, que regulamenta o SUS, segundo citação do Pe. Leo, “garante os princípios do direito à saúde, do acesso universal e gratuito, da integração das ações preventivas com as curativas e da participação da comunidade (controle social) que se dá, de modo especial, por meio dos Conselhos de Saúde (criados pela Lei Federal nº 8.142/1990” (idem). A Organização Mundial da Saúde (OMS), por sua vez, define a saúde não como ausência de doenças, e sim como o completo bem estar físico, mental e social. De um ponto de vista ainda mais amplo, poderíamos acrescentar a busca do equilíbrio psíquico e espiritual.
Entretanto, por melhor que sejam, as leis não bastam. O descompasso entre seu conteúdo e seu cumprimento chega a ser quilométrico, para não dizer infinito. Ocorre que, a exemplo de outros benefícios adquiridos, especialmente na área trabalhista e assistencial, o direito à saúde acaba reconvertendo-se em mercadoria. Mercadoria rara e cara, tanto em termos de acesso aos especialistas quanto na aquisição dos remédios necessários. Quem tem saúde deve pagá-la e que não tem deve comprá-la! A mercantilização da medicina constitui uma dos entraves mais sérios a uma saúde pública justa, abrangente e equitativa. A dor, a enfermidade e os medicamentos geram uma “indústria da doença”, altamente lucrativa e cobiçada.
Indústria que pode ser mãe de outra ainda mais indecente: a judicialização da saúde. De fato, para ter acesso aos direitos garantidos pelas leis supracitadas, não basta correr ao primeiro posto de saúde ou ao hospital mais próximo. Muitas vezes será necessário apelar para a justiça. E aqui os custos com a burocracia e os honorários de advogados, acrescidos às perdas dos dias não trabalhados, alimentam outro tipo de “indústria da doença”. Isso para não falar das fraudes, da corrupção, do tráfico de influência, da compra e venda de atestados medidos, e coisas desse gênero.
Nem precisaria concluir que o acesso aos meios de saúde e aos respectivos remédios torna-se bem mais difícil entre alguns segmentos da população. Entre eles, podemos citar os imigrantes sem documentos, os moradores de rua, os prisioneiros, os desempregados, as mulheres prostituídas, a população do campo… Mas a lista não é exaustiva. Nestes casos, vigoram muitas vezes a falta de conhecimento, as distâncias dos centros de saúde ou o simplesmente o medo de expor-se, como no caso dos estrangeiros “sem papéis”.
Uma verdadeira política pública de saúde, além de combater tais “indústrias”, deve concentrar seus esforços na melhoria do SUS – o “Plano de Saúde” dos pobres. Equipamentos de última geração; profissionais bem remunerados; atendimento humanitário; rede ampla e integrada, nas mais diversas especialidade; remédios ao alcance das famílias de baixa renda; descentralização da cidade para o campo, cobrindo todo território nacional… Eis alguns dos desafios!
rita santiago de oliveira cruz
fev 14, 2012 @ 17:09:55
Este assunto e amplo e é ´reciso descaca´lo ao longo da quaresma e dar continuidade e fazer soar os ecos dele pelos tempos afora