Haiti e o sofrimento sem sentido
Jung Mo Sung
As imagens de destruição da capital de Haiti e dos corpos estendidos nas calçadas, cobertos com o que é possível, como uma forma de última homenagem ou de fazer sair da vista a miséria e a dor das mortes sem sentido, de vidas já muito sofridas ceifadas por um inesperado terremoto, tocam os lugares mais profundos do nosso ser.
Muito já se falou e ainda vai se falar sobre os aspectos geológicos, econômicos, sociais e políticos dessa grande tragédia que abateu sobre o país mais pobre das Américas. É claro que se a população não fosse tão pobre, se as infra-estruturas funcionassem e se tantas outras coisas fossem diferentes, o número dos mortos e feridos seria menor. Muitos vão exaltar a solidariedade que situações desse tipo fazem brotar, outros vão aproveitar o desastre para falar mal da globalização, do imperialismo ou da soberba humana que não respeita a natureza. Falar e falar muito, até como uma forma de catarse do mal estar que se estabelece em nós.
Desastres naturais de grandes proporções sempre nos incomodam profundamente porque questionam a nossa forma rotineira e ordenada de ver e viver a vida e porque nos colocam diante de perguntas difíceis que surgem com o mal e o sofrimento inesperados que atingem indistintamente “os bons e os maus”. Essa indistinção corrói a nossa forma de ver o mundo, que é sempre uma forma de ordenar a partir das diferenças, e nos introduz em um mundo de desordem e caos. Em momentos assim, a tentação imediata é buscar um “culpado” para tentar explicar a situação e nos tirar do mal-estar.
Alguns responsabilizam a “misteriosa vontade de Deus”, pois preferem crer que tudo o que acontece nas nossas vidas ocorrem segundo a vontade onipotente de Deus. Se o mal e o sofrimento vieram das mãos de Deus, devem ter alguma função salvífica. Mesmo que esse Deus pareça meio cruel, essa visão religiosa tem o papel de tentar restabelecer uma ordem estável e segura para o seu mundo e vida, ameaçados pela desordem e caos. Assim, o sofrimento sem sentido poderia encontrar algum sentido.
Outros preferem culpar a sociedade moderna e o capitalismo selvagem que explora os pobres e destrói a natureza. Mesmo que a origem do desastre tenha sido uma falha geológica na crosta terrestre, a culpabilização da sociedade moderna e do capitalismo globalizado tem seus atrativos porque exerce a mesma função de oferecer um “culpado” no qual podemos canalizar as nossas frustrações e raiva. Além disso, é fundamental para manter a idéia ou o projeto do mundo moderno de que é possível criar uma “nova sociedade” isenta desses desastres e crises, assim como de todos os tipos de males. Isto é, o sonho da criação de um mundo totalmente ordenado, sem sofrimentos imprevisíveis. E a realização plena desse sonho só será possível se todos os males e sofrimentos tiverem origem e causa nas ações humanas e na própria sociedade, e se formos capazes de criar um ser humano e uma sociedade sem esses problemas.
No fundo, essa postura é uma forma de manter a ilusão de que nós somos, podemos ou devemos ser messias de nós mesmos e salvar a humanidade da sua condição de precariedade, contradições, com seus potenciais e limites.
Contudo, o terremoto que atingiu Haiti, assim como o tsuname que atingiu a Indonésia e arredores, teve origem em fenômeno geológico que independe da vontade ou da ação humana ou da sociedade. É claro que há aspectos humanos e sociais que agravam ou minoram os sofrimentos humanos, mas pouco podemos fazer para evitar que ocorram, por ex., terremotos.
É claro que não quero, com essas reflexões, propor uma postura de passividade ou resignação frente à morte e sofrimento que assolam o povo de Haiti e ao grande desafio de reconstruir aquele país e de ajudar o seu povo a superar a situação de miséria e pobreza que deve agravar ainda mais nos próximos meses.
O que eu quero é simplesmente propor que antes de nos deixarmos levar pela tentação de “falar e falar” e de procurar “respostas fáceis”, mergulhemos no silêncio, nas regiões mais profundas do nosso ser para meditarmos sobre a fragilidade e imprevisibilidade que marcam as nossas vidas. Como diz o Evangelho, precisamos ficar atentos e “vigiar”. Não porque devamos viver com medo, mas porque, reconciliando com a nossa condição humana, reconhecemos que não há religião, razão, tecnologia ou política que possam impor uma “ordem de harmonia perfeita” sobre a vida e a natureza; não há como prever e controlar todos os aspectos da vida (seja na relação dos seres humanos com a natureza, seja com outros seres humanos e com sociedades).
O que podemos e somos chamados é viver vigilantes a vida no espírito de amor e solidariedade, sentindo em nós a dor e o sofrimento do nosso próximo (mesmo que geograficamente longe), fazendo o melhor possível para construirmos relações humanas e sociais que possibilitem uma vida digna e alegre para as pessoas. Mesmo que não encontremos sentido (se é que há) para tanto sofrimento inocente.