O segredo do poder do capitalismo (II): a dimensão mística das mercadorias e a espiritualidade
Jung Mo Sung
No artigo anterior, eu disse que “o segredo do poder do capitalismo não está na sua força bruta ou no seu poder econômico, mas na sua capacidade de fascinar o povo e, a partir de e em nome dessa fascinação, justificar e até fazer invisíveis as injustiças sociais e as mortes dos pobres”; e que, se não formos capazes de desvelar essa fascinação, as nossas críticas “amargas” sobre o capitalismo não serão entendidas e/ou aceitas pela maioria da população. Em outras palavras, se o nosso “ver” (da famosa trilogia ver-julgar-[planejar]agir) só foca nos problemas sociais e ambientais provocados pelo atual sistema capitalista global e não é capaz de enxergar o seu lado fascinante e sedutor, é um ver incompleto e equivocado.
Na verdade, um dos primeiros – se não o primeiro – a perceber essa dupla dimensão do capitalismo foi Marx. Ele inicia o capítulo I do livro O Capital dizendo: “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’,” e que essas mercadorias satisfazem as necessidades humanas, sejam essas originadas do estômago (necessidades orgânicas), ou da fantasia (desejos que foram transformados em necessidades existenciais).
Penso que é importante aqui recordar que o ser humano é um ser de necessidades orgânicas (comer, beber, proteção contra intempérie, segurança…), mas também um ser de desejos. E entre os mais variados desejos, há o desejo básico de ser aceito, reconhecido, por outras pessoas que consideram importantes ou significativas. Esse desejo de reconhecimento é, podemos dizer, um segundo tipo de necessidade básica: pessoas que se sentem rejeitadas por todas as pessoas tendem ao suicídio ou processo de autodestruição. Portanto, adquirir qualidades humanas ou objetos material-simbólicos que são requisitos para o reconhecimento/aceitação por parte do grupo ao qual quer pertencer passam a ser mais do que simples desejos, se tornam necessidades.
Assim, podemos dizer que há dois tipos de necessidades que todo ser humano precisa satisfazer: as “necessidades orgânicas”, originadas do seu organismo biológico e as “necessidades psicossociais”, originadas da interação do indivíduo com o seu grupo social.
Em uma comunidade religiosa, por ex, as qualidades e práticas religiosas características do grupo são exigências (necessidades a serem cumpridas) para a pertença e o reconhecimento. No caso de uma comunidade de inspiração franciscana radical, é necessário vencer a tentação (desejo que contradiz o espírito da comunidade) de viver no conforto e luxo.
No capitalismo, como diz Marx, cabe à mercadoria satisfazer, não somente as necessidades orgânicas, mas também as necessidades psicossociais do desejo/necessidade de pertença e reconhecimento. Por isso, mercadoria é muito mais do que algo material. Como diz Marx: “À primeira vista, a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente. Analisando-a, vê-se que ela é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manhas teológicas. Como valor de uso, não há nada misterioso nela (…) Mas logo que ela aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa fisicamente metafísica. O caráter místico da mercadoria não provém, portanto, de seu valor de uso.”
Sem entrar em discussão mais aprofundada sobre esse tema, quero somente destacar a menção a “sutilezas metafísicas e manhas teológicas” e ao “caráter místico” da mercadoria dentro do sistema econômico-cultural capitalista. Características essenciais da mercadoria no capitalismo que produzem fascinação e sedução. Hoje em dia, também especialistas em marketing e propaganda (como P. Kotler e T. Gad) falam explicitamente da dimensão espiritual das marcas ou de marketing espiritual na propaganda e nas empresas.
Para desmascarar o caráter perverso e desumano dessa dimensão teológico-mística das mercadorias e dos “grifes”, é preciso fazer o uso da teologia e das ciências da religião. Nesse ponto, a teologia da libertação pode e deve fazer uma contribuição ao debate social crítico. Contudo, teorias podem convencer as pessoas da validade de uma explicação, mas não são capazes de “converter”, de fazer elas verem que estão seduzidos por uma mística desumana e optar por seguir um novo caminho espiritual-existencial. Para é preciso uma espiritualidade alternativa que, além de iluminar a vida, seja capaz de fornecer uma força para vencer a sedução e o “espírito do mundo”. Penso que esse é um, se não o mais importante, desafio para o cristianismo de libertação no mundo de hoje. A força e a relevância do cristianismo de libertação dependem da sua espiritualidade. Uma espiritualidade que não seja marcada pela amargura da crítica “sem fim”, mas pela esperança e luz que ilumina os novos caminhos possíveis. (A continuar)