José Comblin, o legado de um profeta
Maria Clara Bingemer
A Igreja brasileira vive na saudade e na esperança o luto por José Comblin, morto aos 88 anos no último dia 27 de março. Belga de nascimento, brasileiro por adoção, latino-americano por vocação, esse missionário que deu sua vida junto aos pobres e sofredores do sul do Equador deixa um vazio nestes nossos tempos carentes de profetas. Sua voz de fogo e sua razão clara e lúcida certamente provocam imensa saudade e nostalgia.
O Padre José, como era carinhosamente chamado pelo povo nordestino a quem servia, nasceu em Bruxelas, Bélgica, em 1923. Foi ordenado sacerdote em 1947 e obteve o título de doutor em Teologia pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica. Onze anos depois de ordenado, em 1958, Comblin desembarcou em Campinas, Brasil. Aqui, foi assessor da JOC (JuventudeOperáriaCatólica) e professor da Escola Teológica dos Dominicanos emSão Paulo, tendo como alunos alguns frades notáveis na história brasileira como Carlos Alberto Libanio Christo, o Frei Betto e Frei Tito Alencar Lima, torturado barbaramente nos cárceres da ditadura militar brasileira, o que o levou à depressão e ao suicídio na França.
Posteriormente lecionou na Faculdade de Teologia do Chile, mas voltou para Recife a convite de Dom Helder Camara onde foi professor do famoso ITER (Instituto de Teologia do Recife), pondo em prática iniciativas criativas para colocar a teologia ao alcance do povo mais pobre do meio rural. Criou muitos seminários rurais em Pernambuco e Paraíba e aí encontrou inspiração e base para uma Teologia da Enxada.
Por suas idéias e prática, Pe. Comblin passou a ser persona non grata para o regime militar e foi finalmente expulso do Brasil em 1971. Exilou-se no Chile por oito anos. Dali foi por sua vez expulso pela ditadura de Pinochet, em 1980. Voltou ao Brasil e radicou-se na Paraíba, dedicando-se inteiramente à formação de seminaristas rurais e animadores de comunidades eclesiais de base. Alternava essa práxis docente e reflexiva em meio aos pobres com aulas no curso de pós-graduação de missiologia na PUC de São Paulo.
Ouvir José Comblin falar era sempre um privilégio. Comprometido com a verdade, sem fazer nenhuma concessão neste ponto, abria sua boca de profeta e deixava-nos muitas vezes desconcertados e perplexos. Não poupava críticas a uma Igreja que no entanto amava com paixão. E a violência da crítica dava a medida do amor. No entanto, era muito consciente de que a Igreja estava a serviço do Evangelho de Jesus, seu amor maior. E fazia questão sempre de recordar isso.
José Comblin tinha uma grande esperança eclesial: os leigos. Acreditava profundamente nos cristãos batizados que recebiam do Espírito carismas e ministérios e se entregavam ao serviço de sua fé. E por isso criou vários movimentos missionários leigos, na Bahia, na Paraíba, em Tocantins e outros pontos do Nordeste brasileiro.
As reuniões da SOTER (Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião) não serão mais as mesmas sem sua presença lúcida, profética e sábia. Cercado pelos jovens teólogos de todo o Brasil, Comblin sorria e respondia a cada pergunta com atenção e simplicidade, como era seu estilo. Seu pensamento encantava e impunha respeito, mesmo se dele se discordava. Era um mestre, sem sombra de dúvida.
Encontrei-o pela última vez em março de 2010 em El Salvador, no congresso teológico que celebrava os 30 anos do martírio de Monsenhor Romero. Ali estava ele, sorridente, e presente e ativo em corpo e alma. Caminhamos juntos com milhares de outros peregrinos até a catedral onde celebramos com devoção e júbilo a memória viva e subversiva do mártir que congregava gente do mundo inteiro em volta a sua pessoa e seu testemunho.
Ali me disse que agora morava em Barra na Bahia. Explicou-me com uma pureza cheia de simplicidade e por isso mesmo mais comovente que sentia estar perto da morte. E que por isso necessitava converter-se. E nada melhor para converter-se do que estar perto de um profeta. Por isso tinha escolhido ir morar na diocese de Dom Cappio, a quem situava na categoria dos profetas. Seu depoimento comoveu-me profundamente. Ouvir aquele homem de muito mais de 80 anos buscando ainda conversão e proximidade do Senhor após toda uma vida entregue a Deus e aos pobres era realmente edificante.
A notícia de sua morte chegou-me por mensagem eletrônica de amigos. Juntamente com a dor da perda de um irmão mais velho, senti gratidão por sua vida e responsabilidade em não deixar perder seu legado de teólogo, de profeta, de servidor de Deus e de seu povo. Junto ao Padre Ibiapina, o padre José descansa de sua longa jornada. Mas sua profecia continua viva, sem descanso inspirando e movendo novas vocações teológicas que se dispõem a refletir e articular a Revelação de Deus com a história dos pobres que vão se tornando sujeitos de sua história e construtores do Reino.