Lições de misericórdia
Três histórias sobre bispos ocorrem em um cenário que poderia ser chamado nossa “era de construção da paz” na Igreja e no mundo. O trabalho do Arcebispo John Baptist Odama de Uganda, do Bispo Juan Gerardi da Guatemala e do Bispo Carlos Belo do Timor Oriental foi parte de uma onda global de esforços para lidar com as injustiças do passado a fim de poder construir paz e estabilidade. Estes esforços ocorrem no meio de uma terceira onda de democratização que acabou com as ditaduras na Europa do Leste, América Latina, África e Ásia Oriental, depois do fim das guerras civis em lugares tão diferentes como a Iugoslávia e Moçambique, El Salvador e Camboja e depois das intervenções dos Estados Unidos e da OTAN no Iraque, Afeganistão e Kosovo.
Em 14 de julho de 2002, o arcebispo John Baptist Odama, vestido com toda sua indumentária episcopal, efetuou uma difícil caminhada através dos morros de Uganda do norte acompanhado por uma delegação de líderes religiosos, a fim de visitar o esconderijo de Joseph Kony, líder do grupo guerrilheiro Exército de Resistência do Senhor, cuja guerra de duas décadas contra o governo de Uganda teve como resultado a morte de mais de 200.000 pessoas e o seqüestro de milhares de crianças que são depois obrigadas a combater. O safari diplomático de Odama ajudou no estabelecimento de negociações de paz com a guerrilha. O arcebispo defende a reconciliação, opondo-se às acusações de criminosos de guerra da Corte Penal Internacional e, em vez disso, apelando aos ugandeses que perdoem os criminosos, incluindo Kony e que ponham em prática os tradicionais rituais mato oput de reconciliação, visto que podem ajudar a reintegrar os soldados às comunidades civis.
Outro bispo que trabalha pela reconciliação, Juan Gerardi da Guatemala, foi assassinado a golpes por oficiais do exército na garagem de sua casa na Cidade de Guatemala em 26 de abril de 1998. O crime ocorreu dois dias depois da entrega do relatório do Projeto pela Recuperação da Memória Histórica, que havia iniciado em 1995 para divulgar e conseguir a cura depois das atrocidades cometidas durante a guerra civil da Guatemala, que durou uma geração inteira. O projeto de recuperação da memória histórica era único no mundo entre os esforços para conhecer a verdade por sua maneira tão personalista de angariar os depoimentos, feitos mediante centenas de animadores, ou voluntários, que foram repartidos pelos campos para escutar os relatos de camponeses comuns e dar-lhes apoio espiritual e psicológico.
Um terceiro bispo, Carlos Belo do Timor Oriental, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, incentivou a perseguição da responsabilidade penal dos violadores de direitos humanos, especialmente dos generais do Exército da Indonésia que cometeram atrocidades contra os civis do Timor, durante seu longo período de ocupação, entre 1975 e 1999. Mas Belo também falou de reconciliação no Timor Oriental, através de painéis de justiça comunitários que combinam os relatos das vítimas com as desculpas e serviços comunitários que tentam reintegrar os perpetradores das atrocidades em suas comunidades.
Tal como atesta a história de cada um destes bispos, a era da construção da paz está carregada de polêmicos questionamentos sobre a justiça. A anistia deveria ser garantida aos principais criminosos de guerra em aras de assegurar um acordo de paz ou transição para a democracia? Pode-se justificar essa anistia? As vítimas deveriam perdoá-los? Os líderes podem pedir perdão em nome das nações? Os representantes de gerações passadas merecem reparação? Quem está em dívida com eles? A pergunta subjacente é a seguinte: Em que consiste a justiça depois que foi totalmente espoliada?
ENSINANDO RECONCILIAÇÃO
Nas últimas décadas foram criadas mais de 30 Comissões de Verdade. Estabeleceram-se dois Tribunais Internacionais e foi criada uma Corte Penal Internacional permanente. Houve uma combinação sem precedentes de iniciativas de reparação social tanto oficiais como por parte da sociedade civil, para conseguir a reconciliação e a cura dos traumas, manifestados em juízos em tribunais nacionais, leis para impedir que os culpados cheguem a ocupar cargos públicos, reparações, desculpas, museus, monumentos, atos de perdão, rituais tribais tradicionais.
Nunca mais! é a principal resposta à questão de justiça na comunidade de ativistas pró- direitos humanos e advogados internacionais. O julgamento de violadores de direitos humanos e criminosos de guerra é sua maior demanda; a Corte Penal Internacional é sua maior conquista; o manto de anistia, comum na América Latina durante os anos 80, seu maior pesadelo. Seus sócios naturais são os governos ocidentais e as Nações Unidas, para quem a construção da paz significou construir regimes baseados nos direitos humanos, na democracia, livre mercado e no Estado de Direito.
Não obstante, outras vozes articularam um enfoque alternativo: a reconciliação. Provem em sua grande maioria de comunidades religiosas e incluem personagens como os Bispos Odama, Gerardi e Belo. Apesar que habitualmente promovem os direitos humanos e em ocasiões também o castigo, estas vozes advogam por relações mais integrais de reparação de direitos, que envolvam uma gama mais ampla de feridas que as que inflingen a violação de direitos humanos e os crimes de guerra e que envolve uma conjunto mais amplo de ações para curar ditas feridas.
É perfeitamente natural que a Igreja Católica se interesse pela reconciliação. A Eucaristia, que é o sacramento de reconstrução do acontecimento através do qual o pecado, a maldade e a morte são vencidas e a amizade com Deus e com a justiça são restabelecidas, está na origem e no vértice da vida cristã. N4ao será certo que talvez a construção da paz seja exatamente uma imitação desta transformação? Ou talvez uma onda geral de sociedades tentando restabelecer a justiça fazem com que o momento presente seja propício para que a Igreja ofereça um ensino de reconciliação social, da mesma maneira que ofereceu ensinamentos sobre a guerra, o desenvolvimento econômico e a democracia, nas enciclicas passadas?
Os fundamentos destes ensinamentos podem encontrar-se na vida e nos escritos do Papa João Paulo II. O fato de ter vivido sob o nazismo e o comunismo na Polônia levou-o a aprender o necessário da reconciliação, e a ter uma devoção pessoal em direção à misericórdia. Esse foi o tema de sua segunda encíclica, Rico em misericórdia (Dives in Misericórdia, 1980), que terminava com a surpreendente declaração de que o perdão e a misericórdia pode ser praticado na política, não só nas relações pessoais ou no confessionário. Aprofundou este ensinamento em declarações posteriores para o Dia Mundial da Paz, culminando em 2002, quando logo depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, acrescentou ao famoso ditame do Papa Paulo VI “não há paz sem justiça”, a frase “não há justiça sem perdão”. Bento XVI afirmou seu próprio compromisso com estes ensinamentos, em parte ao tomar o nome papal que recorda o Papa Bento XV, que deu profundas mostras de reconciliação durante e depois da Primeira Guerra Mundial.
EDIFICAR SOBRE NOVAS FUNDAÇÕES
A tarefa agora é edificar uma nova ética que possa se encarregar dos dilemas propostos por esta era de construção da paz em relação a como manejar o passado. Essa ética poderia sustentar que a reconciliação é em si um conceito de justiça. Essa proposta poderá soar estranho a ouvidos ocidentais, acostumados a pensar na justiça estritamente em termos de direitos, castigo e distribuição da riqueza. Mas nos textos bíblicos, justiça significa uma relação correta compreensiva entre os membros de uma comunidade e Deus. A reconciliação, que com freqüência aparece como conceito nas cartas de Paulo, significa restauração de um estado de relações corretas e, portanto, de um estado de justiça. Fortes ressonâncias deste significado podem ser encontradas em Deutero-Isaías, que usa a justiça para descrever a restauração integral de Israel por Deus, em última instância através de um servo messiânico sofredor.
A noção bíblica de paz (shalom ou eirene) está intimamente relacionada, implicando numa condição integral de relação correta e de justiça. Há outro conceito bíblico que é essencial e que pode ser considerado como uma virtude que anima a reconciliação: a misericórdia. Tal como a descreve João Paulo II em Rico em misericórdia, “a misericórdia se manifesta em seu aspecto verdadeiro e próprio, quando revalida, promove e extrai o bem de todas as formas de mal existentes no mundo e no homem”, uma virtude ampla e transformadora que se parece à reconciliação.
Reconciliação como justiça, paz e misericórdia, como se manifestam estes conceitos na política de sociedades em processo de cura? Através de uma carteira de seis práticas que em conjunto tratam uma ampla gama de feridas causadas pelas injustiças políticas e que, se não forem tratadas, geram ódios, vinganças e mais injustiças.
SEIS CAMINHOS PARA A RECONCILIAÇÃO E JUSTIÇA
Na primeira destas práticas, os ensinamentos sociais da Igreja convergem intimamente com os postulados da comunidade pró- Direitos Humanos: a construção de instituições socialmente justas baseadas no Estado de Direito, Direitos Humanos e o compromisso da justiça econômica. As relações entre os cidadãos e os estados que estas instituições assumem contituem o objetivo em si da reconciliação no âmbito político e não deveriam ser envolvidos em outros aspectos da reconciliação. Tal era a mensagem dos teólogos negros sul-africanos que escreveram o Documento Kairos em 1985 contra seus colegas da igreja que faziam chamados a favor da reconciliação, mas não se manifestavam contra o apartheid com a mesma força.
Mas direitos humanos e Estado de Direito não são suficientes, devido ao tamnho das feridas da injustiça. Uma destas feridas é a solidão e o isolamento experimentados pelas vítimas quando seu sofrimento não é reconhecido pela comunidade, uma dupla violação, como disse o filósofo político sul-africano André du Toit.
Reconhecimento, a segunda prática da reconciliação, imita o Deus que escuta os lamentos dos pobres e recorda o sofrimento de seu povo. No âmbito político, as Comissões da Verdade são as instâncias mais efetuadas, mas também estão os enterros públicos, os monumentos, os museus e a re-escritura de textos didáticos. Consegue-se a reconciliação, quanto mais pessoal for o reconhecimento, assim como foi estabelecido pelos animadores do Remhi da Guatemala.
A terceira prática também envolve a reparação outorgada pelo estado às vítimas, mas neste caso se trata de um pagamento material. Se bem a reparação só pode aliviar a perda econômica de maneira parcial, seu fim mais profundo é que a comunidade política faça um reconhecimento simbólico do sofrimento da vítima.
Uma quarta prática, o castigo, pode parecer fora de lugar numa ética da reconciliação. Os debates no plano global enfrentam a reconciliação com a retribuição e o castigo com a misericórdia, mas não necessariamente deve ser assim. Sob uma perspectiva católica, o castigo é a prática que restaura o shalom. O Compêndio da Doutrina Social da Igreja afirma seu propósito, “por um lado promovendo a reinserção da pessoa condenada na sociedade; pelo outro, amparar uma justiça que reconcilie, uma justiça capaz de restabelecer a harmonia nas relações sociais, harmonia que foi violentada pelo ato criminoso cometido”. No caso dos cérebros dos crimes de guerra só a privação de liberdade por longos períodos pode comunicar a gravidade de suas ofensas. No entanto, outros combatentes criminosos podem integrar-se novamente em suas comunidades através de fóruns públicos de restauração, como os que o bispo Belo promoveu no Timor Oriental. As anistias, que deixam completamente de lado a reparação, são incompatíveis com o castigo justo; só deveriam ser aplicadas quando se demonstra que são necessárias para conseguir acordos de paz.
O perdão público, a quinta prática, está-se tornando cada vez mais comum em todo o mundo. Isso envolve o arrependimento dos perpetradores e muitas vezes que o chefe de Estado fale em nome do Estado. Por exemplo, depois do fim da ditadura de Augusto Pinochet no Chile, Patrício Aylwin, seu presidente católico, pediu desculpas públicas às milhares de vítimas da tortura de Pinochet, com grande efeito sanador.
O perdão é a sexta e suprema prática. Também é a mais dramática, já que é a vítima que inicia, que não só renuncia ao seu próprio direito contra o perpetrador, mas põe em movimento uma vontade construtiva para restaurar a relação. Teologicamente, o perdão é a participação na redenção do mundo da parte de Deus –um mundo que inclui os perpetradores de atrocidades– através da cruz.
Politicamente, pode ser restauradora, às vezes de maneira dramática. Eugene de Kock, o mais brutal aplicador do Apartheid na África do Sul chegou a se arrepender de seu passado, após ser perdoado pela esposa de um ativista antiapartheid a quem ele havia assassinado. A Igreja Católica tem incentivado as vítimas a exercerem o perdão em inúmeros lugares, incluindo El Salvador, Chile, Irlanda do Norte, Guatemala, Timor Oriental, Uganda e Polônia.
Estas seis práticas podem funcionar em conjunto, cada uma dirigida a curar uma dimensão diferente das feridas, cada uma exercitando a misericórdia para a restauração da paz, e como conseqüência produzindo mais graus de justiça. Na política, as práticas sempre serão incompletas: postas em perigo pelos poderosos, obstaculizadas pelas diferenças no que se entende por justiça, sobrecarregadas por sua delicada complexidade e debilitada pelas instituições políticas que foram destruídas e só parcialmente reconstruídas. Esta parcialidade também contém uma dimensão teológica: o pecado original também é um componente da ética católica da reconciliação. Mas a fé, principalmente quando está guiada pelo Espírito e se vive como participação na ação redentora de Deus, também obtém vitórias. Nas palavras do poeta irlandês Seamus Heany, inclusive na política, há momentos em que “a esperança e a história rimam”.