Lições que aprendi com Pe Comblin: liberdade e a história

Jung Mo Sung

O falecimento do Pe Comblin nos faz enfrentar uma realidade inevitável: a primeira geração (provavelmente a mais criativa e rigorosa) da teologia da libertação está aos poucos chegando ao limite da vida. Uma forma de homenagear pessoas como Comblin é continuar a tarefa de uma reflexão crítica séria comprometida com a causa dos pobres e também de divulgar o seu pensamento para novas gerações de estudante de teologia ou de agentes pastorais.

Pensando nisso é que resolvi escrever este pequeno texto. Mas é uma tarefa muito difícil escrever em uma página o que significou a pessoa e a obra de Pe Comblin para as igrejas cristãs na América Latina e também para muitos não cristãos que conheceram, por exemplo, o seu livro “A ideologia de segurança nacional”. Por isso, eu quero simplesmente compartilhar algumas idéias de Comblin que me marcaram nos últimos 30 anos.

Se há uma palavra que marcou a minha leitura da vastíssima obra de Comblin é a liberdade. Ele disse: “Segundo a Bíblia, a liberdade é mais do que uma qualidade, um atributo de ser humano: é a própria razão de ser de humanidade.” E a afirmação de Paulo de Tarso, “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou (Gal 5,1)” pode ser visto como o mote que guiou a sua obra. Esta busca de liberdade, que impulsiona a luta pela libertação, não pode ser confundida com uma visão moderna burguesa da liberdade. “Não é livre aquele que diz que faz o que quer, mas, na realidade, não sabe resistir à pressão dos desejos, tornando-se escravo dos objetos que excitam o seu desejo.” Nestes casos, a liberdade pressupõe a libertação dos desejos individuais e a sua realização no assumir o serviço e a causa em favor dos mais pobres.

A sua reflexão crítica não era direcionada somente à visão burguesa da vida e da liberdade, mas também a outras teses presentes no nosso meio. Já na década de 1960, quando muitos do cristianismo de libertação estavam descobrindo o marxismo e o utilizando nas análises sociais e nas propostas políticas, Comblin criticava filosofias da história que anunciam um caminhar necessário da história humana para a erupção do Reino da Liberdade (marxismo) ou para “cristificação do universo” (inspirado em Teilhard de Chardin), quando começaria a verdade história humana, plena de harmonia. A sua crítica constituía em duas idéias centrais: a) a liberdade não pode nascer da necessidade; isto é, se a histórica caminha necessariamente para um ponto, este não é liberdade porque processos históricos necessários não podem gerar a liberdade, pois não haveria opção de não chegar; b) esta visão de que após a “revolução final” iniciaria a verdadeira história humana é um mito que desqualifica a história humana a uma pré-história.

A sua reflexão a partir da liberdade se aplica também sobre a noção de Deus. Para ele, a tradição bíblica difere da tradição Greco-Ocidental que busca em Deus o fundamento da ordem atual ou da nova ordem a surgir necessariamente (Deus como motor criador da nova ordem). “Na Bíblia, todavia, tudo é diferente porque Deus é amor. O amor não funda ordem, mas desordem. O amor quebra toda estrutura de ordem. O amor funda a liberdade e, por conseguinte, a desordem. O pecado é conseqüência do amor de Deus.”

“Que Deus é amor e que a vocação humana é a liberdade são as duas faces da mesma realidade, as duas vertentes do mesmo movimento”. Segundo esta forma de ver Deus e o sentido da existência humana, Deus não é mais um ser todo-poderoso que impõe sobre o mundo a sua vontade conduzindo a história para um fim já pré-estabelecido. Uma visão presente não somente em setores conservadores, mas também em diversos setores considerados “progressistas” e eco-socialmente engajados. Deus vem ao mundo como alguém que se fez impotente diante do ser humano livre: “esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana” (Fl 2,7).

Para Comblin lutar pela libertação e uma vida de liberdade não é lutar por um mundo sem mal, pois não é possível vivermos a liberdade sem a possibilidade do mal e do pecado. Deus fez o mundo tal que o pecado é uma possibilidade inevitável. Por isso, ele retoma um texto bíblico muito citado por Juan Luis Segundo, “Já estou chegando e batendo à porta. Quem ouvir minha voz e abrir a porta, eu entro em sua casa e janto com ele, e ele comigo” (Ap 3,20) e diz: “se ninguém abrir, Deus aceita a derrota sabendo que sua criação fracassou. Deus criou um mundo que podia fracassar.”

Essas palavras mostram uma característica de Comblin que sempre admirei: a sua coragem profética de dizer coisas que podem contrariar nossos desejos românticos, desejos que nos levam para fora da história humana e do ser humano real. Assim, ele cumpriu com a sua obra um dos propósitos da teologia da libertação: ser uma reflexão crítica sobre o mundo idolátrico e também sobre a nossa religiosidade e experiência de fé, a serviço da liberdade-libertação dos mais pobres.

 

Fotos de arquivo do O Arcanjo no Ar – na Casa de Oração do Povo da Rua – lançamento do livro A Profecia na Igreja,  do Padre Comblin – març/2009.

Um Comentário

  1. Ir.Cláudia Corteze
    mar 29, 2011 @ 10:59:43

    Amadas(os) irmãs(os) da S. Miguel! Meu irmão, Pe. Júlio! Abraços e saudades. Agora que descobri o site “oarcanjo” tenho que resistir a tentação de ficar muito tempo sobre as novidades daí. Revivo, reencontro-me, sinto-me comunidade com todos/as vocês….. Lembro e relembro muitos fatos que vivi na ]S. Miguel, com intensidade de minha vida, tanto na comunidade como com o Povo da Rua etc, etc.. Vejo e revejo tudo e todos…As sensações são de felicidade e muita esperança. Desejo a vocês a continuidade dessa caminhada da vivência da fé e de sempre novos nascimentos de vida cristã, suportando as “dores de parto” na recuperanção da ecologia e das relações fraternas, como Deus quer.Estou longe, porem meu coração continua pulsando por vocês. Peço uma prece para minha segunda cirurgia na recuperação de uma fratura do fêmur. Contem comigo na prece junto ao Coração de Jesus. Abraços. Ir. Cláudia