Mãe Terra mutilada
Pe. Alfredo J. Gonçalves
São muitos os mutilados que perambulam pela face da terra. E o são cada vez em maior número e nas mais variadas dimensões. Solitários, órfãos, perdidos – de um lado para outro em busca de migalhas de trabalho e pão. Mutilados no corpo, na mente e na alma; mutilados na integridade familiar, cultural ou cidadã; mutilados nos direitos elementares, na participação política ou na dignidade humana. Mutilados desde a infância, adolescência ou juventude, em plena força de sua vida adulta ou no outono ressequido da existência. Em grande parte dos casos, impossibilitados de arcar com o ônus da própria sobrevivência, menos ainda da família.
Não são santos nem inocentes, apenas vítimas indefesas das turbulências abruptas e imprevisíveis da história. Banidos de um modelo político e econômico que, a um só tempo, concentra e marginaliza, agrega e segrega. Um sistema baseado na velocidade e voracidade da produção, mercantilização e consumo. E que cria uma porção de filhos robustos e saudáveis ao lado de uma imensidão de excluídos, o luxo de mãos dadas com o lixo, a abundância e o desperdício coexistindo com a miséria e a fome. Ou então filhos “incluídos perversamente” (JS Martins) no ritmo enlouquecido da técnica e do progresso, onde o crescimento tem o primado sobre a distribuição da renda e da riqueza. O motor do lucro e da acumulação de capital faz “crescer o bolo sem dividi-lo” e, ao mesmo tempo, dissemina em sua massa o fermento nocivo de numerosas enfermidades. A panacéia de um PIB (Produto Interno Bruto) sempre em ascendência, ainda que seja em milésimos ou centésimos, ignora a necessidade da partilha para um corpo social saudável. “O desenvolvimento é o novo nome da paz”, dizia o Papa Paulo VI, ainda em 1967, na Populorum Progressio, ciente de que não basta inchar o busto de uns poucos, deixando o restante do organismo inflamado de bactérias e enfermiço de chagas incuráveis. Daí a mutilada multidão dos sem: sem terra nem teto, sem escola nem saúde, sem trabalho nem lazer… Não raro mutilados em seus próprios sonhos e esperanças. Abatidos e curvados pelo peso de um passado marcado pela pobreza e de um futuro nublado pela incerteza.
O modelo neoliberal vigente, entretanto, mutila também a própria terra, a fonte primordial da vida em todas as suas formas, o berço da biodiversidade. Retira de nosso planeta a função milenar de perpetuar o ciclo da vida, através da idéia de “na natureza nada se perde e nada se cria, tudo se transforma” (Lavoisier). A ganância de produzir, vender e consumir, a médio e longo prazo, priva a mãe terra de seu direito mais genuíno: gerar e nutrir seus numerosos filhos. Em lugar do carinho, da amamentação e do cuidado, ela se vê forçada a abandoná-los e eliminá-los, através da poluição do ar e das águas, da devastação e desertificação do solo, do aquecimento global e do desequilíbrio dos vários ecossistemas. Sofre a mãe e sofrem os filhos, especialmente os mais vulneráveis e fragilizadops. A primeira pelo leite contaminado, pois a água é o sangue/seiva/leite deste gigantesco organismo planetário; ou outros, por se alimentarem de uma matriz progressivamente doentia e estéril.
Desfaz-se também a grande sinfonia do universo. Cada ser vivo e cada coisa, orgânica ou inorgânica, tocam determinado instrumento na gigantesca orquestra da criação. Os astros brilham e iluminam, brilha também o olhar dos que amam; abrem-se e sorriem as flores, gorjeiam e dançam os pássaros, pulam e brincam as crianças; murmura e ruge a água, ruge igualmente e canta o vento e a brisa… Cada nota em seu lugar, mas um mínimo toque destoado desafina toda melodia. A música se faz ruído. Vale a idéia da “paulicéia desvairada” (Mário de Andrade), onde caros, pessoas, máquinas ensurdecem o ambiente. A poluição sonora instala-se no lugar da sinfonia do universo. Até mesmo o coração humano, atormentado de tantos e tão variados sons, se vê lançado para fora do diapasão divino. É como se seguíssemos na onda FM, enquanto a criação permanece em AM. Em lugar de sons harmônicos, ouve-se o chiado da falta de sintonia. O barulho, ou barulhos no plural, nos afasta do oxigênio silencioso e repousante da Casa de Deus. Por isso que, segundo o ditado popular, “faz mais barulho uma árvore que cai do que uma floresta que cresce”.
Como reverter semelhante quadro? O que fazer para que o planeta azul siga sendo mãe e berço da vida em todas as suas espécies? Como acudir ao grito estridente da terra? Numerosos cientistas, estudiosos de diversas áreas, ambientalistas, movimentos sociais e organizações de base se empenham cada vez mais em buscar alternativas à civilização matematizada, calculista e mercantilista. Impõe-se hoje o combate sem tréguas à exploração exaustiva dos recursos naturais, da força de trabalho humano e do patrimônio cultural de todos os povos e nações. Não podemos mais aspirar ao padrão de vida dos países centrais. Semelhante padrão, se e quando estendido a toda população do planeta, não se sustenta. Um exemplo apenas: a terra não recicla a água potável com o mesmo ritmo e na mesma quantidade que gasta um cidadão comum desses países. Está em jogo a recriação da própria civilização como um todo. Como repensar um mundo ao mesmo tempo justo, solidário e sustentável?
Podem surgir aqui os malthusianos de plantão. Segundo Thomas Malthus, se a capacidade de gerar alimentos cresce de forma aritmética e a população mundial de forma geométrica, será necessário um plano para diminuir o número de habitantes do planeta. Definitivamente, não se trata de diminuir o número dos convidados ao banquete da vida, e sim de distribuir melhor os alimentos e os benefícios do progresso. A ciência, o progresso e a tecnologia de ponta, têm atualmente potencialidade para produzir muito mais bens do que a população necessita. Trata-se de buscar uma vida cada vez mais frugal, sóbria, igualitária e, novamente, sustentável com o ritmo natural da vida no planeta. Sustentável de um ponto de vista ecológico e social.
Se é verdade que, por toda parte, crescem as ameaças à vida, também é certo que cresce igualmente, e se amplifica, a consciência dos riscos de catástrofes provocadas pela agressão humana à natureza. Esta, com a mesma violência que é tratada, reage e agride, mutila e mata, aos milhares e milhões. Tornados, nevascas, chuvas torrenciais seguidas de inundações, estiagens prolongadas, furacões – todas essas ocorrências parecem tornar-se mais intensas e mais frequentes com o passar dos anos. A mãe se enfurece quando os filhos não a respeitam em seu ritmo vital, a as fúrias costumam cair sobre a cabeça daqueles que mais amamos. Multiplica-se o número de mortos, desaparecidos, desabrigados, deslocados, emigrantes ou “refugiados ambientais”.
Não que as causas ambientais sejam os fatores predominantes para o abandono da terra natal. Em geral, por trás das tempestades ou catástrofes, escondem-se fatores estruturais, tais como a estrutura agrária e agrícola, as assimetrias e injustiças, a precariedade dos serviços públicos. Muitas vezes uma seca, uma enchente, ou qualquer outra catástrofe apenas marca a hora da saída. Mas a raiz do êxodo, no fundo, é de ordem socioeconômica. Se os fatores climáticos aparecem com a causa imediata, existem normalmente outras causas remotas e invisíveis. Isso é fácil de comprovar se atentarmos para o fato de que, via de regra, são os pobres que migram. Numa palavra, as causas ambientais penalizam as populações que já vivem em condições precárias, obrigando-as a escapar. Parafraseando Gabriel García Marques, fogem de flagelos anunciados. Resta saber em que medida essa fugas pode ou não converter-se em nova busca, momento em que os “refugiados ambientais” podem tornar-se profetas do amanhã, denunciando leis que lhes negam a cidadania na própria terra, e anunciando a necessidade de mudanças urgentes e necessários, na construção de uma cidadania sem fronteiras.
A responsabilidade desse processo de devastação e morte é de todos, mas o é em forma diferenciada. As grandes empresas, o agronegócio, as companhias mineradoras, as obras faraônicas e a política dos países centrais concentram maior poder de destruição. Emitem também maior volume de gases de efeito estufa, e mais produtos poluentes. Da mesma forma que a responsabilidade, também a tarefa de reverter esse cenário compete a todos. Mas tanto uma como a outra possuem graus distintos. Cada um tem sua parte de culpa e de reconstrução, mas de pouco valerão as ações individuais ou grupais, se os grandes conglomerados empresariais e as grandes potências não fizerem sua parte. Iniciativas de reciclagem, por exemplo, iluminam o caminho a seguir. Mas se não forem seguidas por esforços nacionais e internacionais no sentido de diminuir os fatores de agressão ao meio ambiente, não passarão de uma vitrine.
Em outras palavras, a reação deverá ser coletiva, sem dúvida, mas o será de forma diferenciada. As ações individuais ou de grupos têm sua importância exemplar, mas somente as macro-políticas possuem efetivamente o poder de salvar o planeta e a vida sobre ele. Vale um exemplo: por um lado, o país que mais lança gases de efeito estufa na atmosfera é os Estados Unidos; por outro lado, foram justamente seus representantes que sempre se recusaram a cooperar com as políticas para diminuir esse percentual, a começar pelo tratado de Kyoto. É certo que cada um de nós pode e deve fazer sua parte. Mas deve igualmente, e com maior razão, cobrar de seu país e/ou da política ambiental internacional ações amplas, urgentes e eficazes.