Maioridade penal: omissão e distorção na mídia

Celso Vicenzi
Adital

Quem acompanha diariamente as notícias na mídia sobre atos de violência cometidos por adolescentes tem a sensação de que os jovens brasileiros são os autores da maioria dos crimes graves no país. A mídia tem sido muito eficiente em provocar uma quase-histeria na opinião pública, para tentar legitimar mudanças nas leis do país. A principal delas seria a redução da maioridade penal para 16 anos. Comentaristas de TV e de emissoras de rádio –principalmente– têm sido pródigos em vociferar argumentos equivocados, de forte apelo emocional, na tentativa de imputar aos adolescentes infratores uma violência muito maior do que de fato ocorre. Jornalistas e radialistas mal informados (na melhor das hipóteses) ou irresponsáveis e inconsequentes, e, neste caso, pouco éticos –com a conivência dos proprietários– usam os meios de comunicação para difundir preconceito e discriminação.

Argumentos falsos não resistem à informação correta. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), os adolescentes brasileiros são responsáveis por 3,8% dos homicídios. Ou seja, uma quantidade muito pequena diante da gritaria geral para sustentar a redução da maioridade como a grande solução para a diminuição da criminalidade no país. A quem se quer enganar com tão tosca solução, que se provará tão inútil quanto tantas outras que não combatem a raiz do problema? A maioria dos crimes cometidos por menores de idade que cumprem medida socioeducativa são crimes de roubo e furto (43,7%) e de tráfico de drogas (26,6%), conforme dados de 2011 do Ministério da Justiça.

Nos Estados Unidos, onde existe pena de morte para adolescentes, eles são responsáveis por 11% dos homicídios cometidos, informa a Unicef. Aumentar a punição, não resolve o problema da violência. O que contribui para a solução é mais educação, distribuição de renda e políticas públicas de inclusão social. E isso já foi demonstrado em vários estudos.

A pesquisa Tendências do Crime, da ONU, revela que são minoria os países que definem o adulto como pessoa menor de 18 anos. Em 53 países estudados, 42 deles (79%) adotam a maioridade penal aos 18 anos ou mais. A Alemanha restabeleceu a maioridade para 18 anos e o Japão aumentou para 20 anos. A tendência é pelo uso de medidas socioeducativas.

Para uma outra tragédia, porém, não se vê praticamente nenhuma mobilização da sociedade, dos meios de comunicação, dos legisladores, das autoridades do país: nos últimos dez anos, 80 mil adolescentes foram assassinados no país. Uma verdadeira carnificina. Na maior parte dos casos, são jovens negros ou pardos, de baixa renda. Para conter essa violência, não há nenhum projeto em tramitação no Congresso Nacional. No entanto, segundo entidades que atuam em defesa da criança e do adolescente, existem 1.566 projetos em tramitação que se referem a direitos das crianças e adolescentes, mas apenas 376 são considerados positivos. Os demais apontam para retrocessos.

Há outro falso argumento. O de que direitos humanos protegem criminosos. Direitos humanos protegem a sociedade da barbárie, porque, num mundo sem leis e sem a proteção da dignidade humana, todos estão muito mais vulneráveis. Sociedades brutais degradam o ser humano e geram mais violência. E há uma pergunta que precisa de resposta urgente: por que o Brasil ainda tolera a tortura em muitas delegacias e presídios? Talvez pelo mesmo motivo pelo qual nunca foram punidos os torturadores que atuaram durante os anos de ditadura no país.

Não é fácil evitar sentimentos de vingança quando a violência explode de forma contundente, não raro vil e covarde. Sim, há casos graves, cruéis, que envolvem a participação de crianças e adolescentes. Mas o legislador não pode escrever as leis babando de ódio. Tampouco o aparato policial deve fazer justiça por conta própria. Nem a sociedade urrar de prazer diante da eliminação física ou da tortura daqueles que trilharam o caminho do crime. Porque esta mesma sociedade, que escolhe seus governantes, é corresponsável pela omissão do Estado.

Somos um país violento, corrupto e desigual. E há muita impunidade, sobretudo nas camadas mais ricas da sociedade. Temos que lutar contra isso.

Sem investir em educação, formação profissional e distribuição de renda, não avançaremos na luta contra o crime. O Brasil é um dos países que mais prende, e a violência não para de crescer. São mais de 500 mil presos. E mais de 200 mil mandados de prisão para cumprir. O número de detentos por 100 mil habitantes, em 2007, era de 229 no Brasil, 154 na Argentina, 117 em Portugal, 99 na Grécia, 92 na Alemanha, 83 na Itália e 66 na Dinamarca. De cada cinco presos brasileiros, apenas um trabalha. E de cada dez presos ou processados no Brasil, um é vítima de erro da Justiça. Há muito por fazer antes de achar que a solução é construir mais prisões – boa parte delas piores que os calabouços medievais.

O drama daqueles que são vítimas de violência, seja por ação de adolescentes ou adultos, deve ser acolhido e amparado. E, para que não volte a ocorrer, é preciso que a sociedade não se omita e não busque subterfúgios em falsas soluções. Se hoje há criminosos que desafiam a autoridade policial e o estado de direito, é porque falta, sobretudo, autoridade moral ao Estado para exigir o cumprimento da lei. A corrupção e a conivência com o crime em altos escalões alimentam continuamente as forças que agem contra a democratização da sociedade.

Quando o Estado não proporciona educação de qualidade; quando não garante saúde, lazer e proteção à infância; quando o braço forte da lei só atinge os mais pobres; quando não há políticas públicas para desconcentrar a renda e permitir que famílias possam sair da miséria e viver com dignidade; quando não se oferecem oportunidades a crianças e adolescentes, sobretudo aqueles que estão em situação mais vulnerável, como acreditar que é possível conter a violência? Quando a mídia contribui para a construção de um modelo de sociedade injusto, excludente, que humilha os mais pobres, como pensar em uma convivência pacífica?

Caberia à mídia, pelo seu alcance, fazer um debate honesto, sem casuísmos, sem a falsificação de dados, sem a omissão de informações, sem incitar o preconceito, a discriminação e o ódio de classe. Em outras palavras, que a mídia simplesmente faça o que seria sua obrigação: jornalismo! O debate sobre soluções para a violência tem que discutir o modelo de sociedade. Tem que ir à raiz, fugir da superficialidade, da ignorância e da demagogia, para responder, afinal, que país é este, onde se mata e se morre, às vezes com tanta crueldade. Não somos obra do acaso. Nós construímos esse modelo de sociedade. Temos que inventar outro, tendo a educação e a solidariedade como grandes alicerces.