Manchetes da Bíblia
Dom Demétrio Valentini *
Neste domingo termina em Roma o Sínodo sobre a Palavra de Deus. Pelo número de peritos convidados, fica evidente a provocação para um renovado interesse pela Bíblia, uma coletânea de escritos que recolhem dois milênios, de Abraão ao primeiro século de nossa era, que servem de paradigma para toda a humanidade.
Sua mensagem continua válida. Mas sua natureza de texto escrito a partir de vivências concretas coloca sempre de novo a necessidade de transpor estas experiências para os novos contextos que a história vai engendrando. Disto decorre ao mesmo tempo a permanência da Bíblia como “significante” estruturado, portador de um “significado” que precisa ser deduzido e atualizado, para usar palavras da moderna lingüística. E´ o permanente desafio da correta “interpretação” da Bíblia .
Anos atrás, nos bons tempos da aprendizagem escolar a partir do “livro-texto”, era preciso “passar de livro”. A Igreja não precisa “passar de livro”! Ela pode ficar os séculos todos com o mesmo livro, escrito em parceria única de Deus com os meandros da história humana..
Em sua forma final, a mensagem da Bíblia é apresentada como “Boa Notícia”, “Boa Nova”, um “Evangelho”, como ficou cunhada a palavra típica para se referir à mensagem de Jesus de Nazaré. Antes de apresentar o “noticiário”, sempre convém destacar as manchetes centrais, que atraem a atenção.
Percorrendo a Bíblia, identificamos logo algumas destas “manchetes”, que ajudam a situar o conjunto da mensagem.
A primeira delas é a respeito de Deus e do relacionamento especial que ele estabeleceu com seu povo: “Escuta, Israel, o Senhor é o teu Deus, um só é o Senhor” (Dt 6,4). São palavras muito densas. Contêm ao mesmo tempo a afirmação do senhorio de Deus sobre seu povo, e a enfática declaração de sua unicidade. E´ a passagem mais lembrada pela espiritualidade hebraica, na famosa expressão retomada com freqüência nos salmos: “shemá, Israel, o Senhor é o teu Deus, um é o Senhor!”, reafirmada sem rodeios por Jesus (Mc 12,29).
Aí encontramos a contribuição religiosa mais importante do povo hebreu. A ele devemos a clara consciência do moteismo, indispensável para balizar corretamente toda a revelação bíblica a respeito de Deus. Bastaria isto para sermos eternamente agradecidos aos nossos “irmãos maiores”, os judeus. Historicamente eles se identificam com esta nobre causa da afirmação inequívoca da unicidade de Deus, que abre caminho para a correta compreensão do seu mistério, refletido na sua criação, e revelado por sua iniciativa.
Em decorrência desta afirmação teológica, segue a outra “manchete”, de ordem ética, o “mandamento” do amor total a este Deus único e exclusivo: “Portanto, amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força” (Dt 6,4).
A estas duas manchetes convém logo acrescentar a terceira, que liga o amor a Deus com o amor ao próximo: “Amarás o próximo como a ti mesmo”. Quando perguntado pelos fariseus sobre o “primeiro” mandamento, Jesus sempre fazia questão de lembrar que havia um “segundo”, que inclusive comprovava a veracidade do primeiro (Mt 22,38). E acrescentava: “Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22,40).
Depois, vieram as “manchetes” decorrentes da “Boa Nova” anunciada por Jesus. Ele colocou a si próprio como referência para o amor ao próximo. E fez questão de ressaltar: “este é o meu mandamento, que vos ameis uns aos outros como eu vos tenho amado” (Jo 13,34). Amar o próximo como a si mesmo fazia parte da antiga lei. Amar o próximo como Jesus amou, faz parte do Novo Testamento.
Por fim, outra “manchete” que pode ser colocada nesta perspectiva de evolução da mensagem bíblica, é aquela que o apóstolo João nos apresenta: “Deus é amor, e quem ama permanece em Deus e Deus permanece nele” (1Jo 4,16).
Como robustos varais, estas “manchetes” permitem desdobrar todas as páginas da Bíblia, e estendê-las ao sol da compreensão humana.
* Bispo de Jales, São Paulo.