Marcha para quê e para quem?
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Para quem se encontra há algum tempo fora do Brasil, soou muito estranha a notícia sobre a preparação da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, marcada para o dia 22 de março de 2014. O objetivo era realizar uma espécie de segunda edição da famigerada Marcha de 1964, naquela ocasião em apoio ao Golpe Militar do mesmo ano, onde religião e política, com o terço de permeio, se davam as mãos sem maiores problemas. Os problemas surgem somente quando se trata da justiça e do direito. Bem dizia nosso querido Dom Hélder Câmara: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo; quando pergunto por que são pobres, me chamam de comunista!” O certo é que de longe, eu me perguntava: afinal, que acontece desta vez em terras de Santa Cruz? Será que as coisas andam tão mal do outro lado do oceano? Não podia acreditar, uma vez que, nas últimas semanas ou meses e mesmo à distância, não havia sentido nada que justificasse novamente um regime de exceção. Por quê a Marcha? Por quê tanto medo? Por quê a volta dos militares?…
Confesso que senti um suor frio pela espinha dorsal, ou aquele friozinho na barriga que nos faz pressentir algo inesperado e indesejável, instalando um sentimento indefinito de “disagio o malessere”, como se diz em italiano (mal-estar). Além de uma pulga atrás da orelha, usando desta vez um ditado popular que todos conhecem. Felizmente, tudo correu bem; ou melhor, tudo correu mal! Sim, porque a tal da segunda edição da Marchade 1964 não passou de um “fiasco”, como pude constatar posteriormente pelo noticiário e pelas imagens. Imagens bem magras, tímidas e pífias, de raras pessoas e raros grupos que se aventuraram a mostrar a cara. Ou talvez a escondê-la (de vergonha) atrás de enormes bandeiras e faixas com frases que lembravam a guerra fria, há muito morta e enterrada. Uff! – que alívio – ainda desta vez o Brasil permanece isento de terremotos!
De fato, a intervenção militar, por si só, como pediam algumas faixas e alguns entrevistados entre os poucos manifestantes, era motivo de temor e tremor. Depois de três décadas de “experiência democrática”, o retorno das fardas e das botas, dos soldados, dos generais e dos tanques, deixa qualquer um de cabelos em pé. O rastro de medo, sangue e violência deixado pelo regime militar jamais pode ser apagado nas gerações que o conheceram de perto, mais ainda nas pessoas que sofreram no corpo e na alma suas consequências. Isso para não descer aos detalhes sobre as dezenas, centenas (milhares?) de perseguições, prisões e torturas. “O terreno lá de casa não se varre com vassoura; varre com ponta de sabre, bala de metralhadora”, diz a canção de Geraldo Vandré. Ditadura nunca mais!
Por outro lado, no parágrafo anterior e neste escrevo “experiência democrática” (não democracia) e sempre entre aspas. Estas últimas deixam entrever lacunas, limites e entraves que não podem ser ignorados. De fato, nossa “democracia” (aqui também entre aspas) tem revelado supresas e sobressaltos que nos assustam e fazem refletir. Não tanto como a presença dos militares nas ruas e no poder, evidentemente, mas trazem desencanto, e descrédito, bem como um certo mal-estar e uma incerteza quanto aos rumos da política brasileira. O que vale, de resto, para a “experiência democrática” de não poucos países do Ocidente orgulhosamente democratizado. As sensações de insegurança são as mais diversas e às vezes sem nome.
A primeira vem do sentimento de que ainda vivemos numa “democracia” amarrada pela camisa-de-força da economia neoliberal, com poucas margens de manobra e pouca participação para as forças populares efetivamente organizadas. Democracia que levanta pequenas ondas na superfície das águas, com a brisa das ações políticas encenadas no palco e diante da plateia, mas deixa inalterado o quadro das correntes subterrâneas, onde prevalece o vento forte da economia de mercado. Isso quer dizer que o liberalismo, neste caso, equivale à “liberdade de galinhas e rapousas dentro de uma mesmo galinheiro” ou de “tubarões e sardinhas dentro de um mesmo aquário” (as aspas, bem como os parêntesis, continuam nos perseguindo). Numa palavra, os fortes tornam-se mais poderosos às custas dos fracos, cada vez mais enfraquecidos.
Dessa primeira sensação deriva uma segunda. Hoje tornou-se amplamente conhecido e notório o fato de que o país não só faz parte, mas abre a lista do grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Mais do que países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento, trata-se de países de economia emergente, com grande potencial de recursos, naturais e humanos, e expectativa de crescimento sustentável. Mas não podemos evitar a pergunta: economia emergente para quem? Quem sai ganhando com a potencialidade deste “gigante adormecido” que resolve acordar? Na verdade, os benesses e privilégios, renda e riqueza continuam convergindo para o andar de cima da pirâmide, deixando os habitantes do andar de baixo em condições tão precárias quanto antes, salvo uma faixa limitada da população “assistida”. Dai a concentração, ao mesmo tempo, de acúmulo de capital e de exclusão socioeconômica. Crescimento contraditório e viciado, incapaz de resolver o abismo da desigualdadade social entre o topo e a base da pirâmide.
Particularmente, eu e tantos outros cultivamos e nutrimos por longo tempo uma terceira sensação: a esperança que um “governo popular” (estas aspas não nos querem mesmo abandonar!), com raízes na Senzala, pudesse substituir o piloto automático da economia liberal pelo piloto manual de uma política econômica a serviço das necessidades básicas da população de baixa renda. Disso resultaríam algumas mudanças necessárias e urgentes, tais como a reforma agrária e agrícola, a reforma tributária, a reforma política, a reforma jurídico-legislativa… Sem falar dos serviços públicos de transporte coletivo, da segurança e educação, da saúde, e habitação, etc. Tendo como berço os movimentos populares e estudantis, a organizaçao do sindacalismo combativo a partir da base e os campos de força das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), da Teologia da Libertação (TdL) e das Pastorais Sociais – esperava-se que o Partido dos Trabalhadores (PT) representasse uma guinada, pequena mas significativa, susbtantiva, no rumo desta gigantesca nave chamada Brasil.
Com o passar dos anos e dos mandatos, porém, nada de substantivo no horizonte! Chegamos assim à quarta sensação. No fundo, aquela esperança, longa e laboriosamente alimentada, mesmo regada com o fermento das organizações e movimentos sociais e das Semanas Sociais Brasileiras (SSBs), com a participarção direta nas Assembleias e nos Plebiscitos populares, com teimosia da Campanha Jubileu Sul e do Tribunal da Dívida Pública ou com a repetição anual do Grito dos Excluidos – sofre hoje de uma decepção crônica. Em lugar de políticas públicas, de médio e longo prazo, voltadas para as necessidades fundamentais e estruturais da economia brasileira, o que desfila no cenário nacional são políticas compensatórias, de curto prazo, revestidas de uma retórica com fins visivelmente populistas e eleitoreiros. Para usar a expressao de alguns analistas, um projeto de partido, com a pretensão de garantir a todo custo a cadeira cativa sobre as rédeas do poder, substituiu o progeto de nação, em que o olhar se detém não tanto nas eleições futuras, e sim nas gerações futuras.
Arco, Trento, Italia, 26 de março de 2014