Metrópoles ou necrópoles

Pe. Alfredo J. Gonçalves

Os aglomerados urbanos, em especial nos países pobres, incham em lugar de crescer. Da mesma forma que as crianças subnutridas, desenvolvem grandes barrigas, sustentadas por pernas frágeis e raquíticas. É o caso do protagonista de Morte e Vida Severina, poema de João Cabral de Melo Neto. Pior que isso, as grandes cidades tendem a concentrar, ao mesmo tempo, o luxo e a miséria. Verifica-se uma expansão comandada menos pela satisfação das necessidades vitais, e mais pela ganância e acumulação de capital. Este atrai investimentos, tecnologia, mercadorias e lucros, mas, simultaneamente, também atrai pessoas à procura de trabalho.

Desenvolve, a um só tempo, alfhavilles ao lado de favelas e cortiços. Sem controle por parte do poder público, a expansão urbana torna-se um fim em si mesma. As facilidades das inovações tecnológicas de ponta projetam, como veremos mais adiante, um tipo de crescimento mecânico, em lugar de um desenvolvimento orgânico. Daí ao aumento de um tecido urbano canceroso, ou ao surgimento de verdadeiras necrópoles, o passo não é tão longo como muitas vezes gostaríamos de acreditar. Ao alongar indefinidamente a mancha urbana, podemos estar cavando a própria sepultura.

Três Exemplos

Comecemos com três cenários nada animadores. Primeiro: “os veículos puxados a cavalo, em Nova York, segundo um estudo de tráfico feito em 1907, deslocavam-se a uma velocidade média de 18,5 quilômetros por hora; hoje, arrastam-se os automóveis à média, durante o dia, de uns 9,5 quilômetros por hora” (MUMFORF, Lewis; A Cidade na História, Martins Fontes, São Paulo, 2008, pág. 656).

Segundo: no final de maio de 2011, a metrópole de São Paulo comemorava o registro de 7 milhões de veículos motorizados, para uma população estimada em cerca de 10 milhões de habitantes. Registrava, ao mesmo tempo, a existência de aproximadamente 800 mil motocicletas, com mais de um motociclista morto a cada dia no trânsito caótico. Nessa maior cidade da América do Sul, chegam mais carros às ruas do que crianças às maternidades.

Terceiro: tentemos fazer o cálculo de quantos metros quadrados de asfalto ocupa um ônibus articulado com, digamos, um número imaginário de 60 passageiros. Logo em seguida, não será tão difícil calcular a área ocupada pelas mesmas 60 pessoas, se cada uma se der ao luxo de locomover-se de casa para o trabalho, individualmente, no seu carro particular.

Mito e gigantismo da Metrópole

Os cenários descritos nos parágrafos anteriores nos levam a concordar com Lewis Mumford, quando em 1930, na obra A cultura das cidades, traçava a forma de “um resumo do inferno”. O autor oferecia ainda “uma síntese da interpretação feita por Patrick Geddes do ciclo urbano da aldeia (eópoles) à megalópoles e à necrópoles” (idem, pág. 663).

Permitamo-nos uma longa citação do mesmo historiador, com uma metáfora que vem a calhar: “nossa civilização atual é um automóvel gigantesco a se mover numa estrada de mão única, a uma velocidade cada vez maior. Infelizmente, tal como está construído agora, faltam ao carro tanto o volante quanto os freios. E a única forma de controle que o motorista exerce consiste em fazê-lo andar mais depressa, embora, fascinado pela própria máquina e convencido de que deve atingir a maior velocidade possível, ele tenha esquecido por completo o objetivo da viagem. Esse estado de desamparada submissão aos mecanismos econômicos e tecnológicos que o homem moderno criou é estranhamente disfarçado de progresso, liberdade e domínio da natureza pelo homem. Em consequência, tudo o que é permitido passou a ser compulsão mórbida. O homem moderno dominou todas as criaturas acima do nível dos vírus e bactérias – exceto o próprio homem”.

Cada vez mais desorientado e caótico, descontrolado e descontínuo, o crescimento urbano atende a interesses bem precisos, seja por parte da especulação imobiliária, seja pela prioridade que oferecem os órgãos administrativos ao transporte privado. Daí a pertinente introdução do conceito de conurbação: “a continuada expansão da metrópole na disforme conurbação megalopolitana e a multiplicação e extensão dessas conurbações revelam a profundeza da praga que todas as sociedades enfrentam hoje em dia”. “A forma da metrópole é, pois, sua disformidade, assim como seu alvo é a própria expansão sem alvo” (idem, pags. 649 e 660).

A subordinação ao ritmo da máquina e às inovações tecnológicas compromete todas as salvaguardas da vida, ou de uma vida com razoável qualidade. Os meios se convertem em fins. Sem qualquer mecanismo regulador, impera a lei férrea do mercado e de um individualismo elevado à máxima potência. Com isso, a cidade, que deveria acolher, cuidar e proteger, simultaneamente agrega e segrega seus habitantes. Utilizando a expressão de David Riesman, uma multidão solitária, como um rio de águas turvas, flui diariamente por seus becos e ruas. Ou, no plural, multidões solitárias: estranhas, órfãs e perdidas no concreto, no asfalto e nos ruídos que as envolvem. É o que Lewis chama de “massa colossal, coagulada, autoderrotada”.

O certo é que, sobre uma racionalidade reguladora com instrumentos e políticas controladas, pesa a força bruta dos privilégios da Casa Grande. Pesam também os interesses do capital e a concentração do poder financeiro, dos quais a metrópole é o “reservatório natural”. Quanto aos moradores da Senzala, espremem-se no transporte público, tão apinhado e desconfortável quanto ostensivo e progressivo é o crescimento dos automóveis de luxo, em não pequeno grau importados. Semelhante civilização metropolitana contradiz a própria função da cidade, o que é reflexo do contexto da economia globalizada. Como insiste o autor, “a complexidade e a abrangência cultural da metrópole abarcam a complexidade e a variedade do mundo como um todo (…). O tamanho cívico serve de substituto da organização adequada, como no mercado de trabalho; e a expansão mecânica é tomada por significação” (idem, pág. 669).

Da Metrópole à Necrópole

Hoje, os países do Terceiro Mundo, de forma peculiar os chamados emergentes, sofrem de forma mais acelerada essa ameaça de uma metropolização universal, o que faz Lewis contrapor a cidade histórica à conurbação. Enquanto aquela, embora supercrescida, “era ainda, residualmente, uma entidade, a conurbação é uma não-entidade e torna-se mais patente como tal à medida que se propaga” (idem, pág. 645). De acordo com Oliver Mongin, hoje existem no mundo 175 cidades com mais de um milhão de habitantes. As 13 mais povoadas situam-se nos continentes da Ásia, África e América Latina. Há 33 megalópoles anunciadas para o ano de 2015 e só uma das dez maiores – Tóquio – será uma cidade rica (MONGIN, Oliver. La condición urbana, Paidós, Buenos Aires, 2006). Megalópole combina com pobreza e riqueza, ambas concentradas.

Tendo como motor, de um lado, os próprios avanços da tecnologia e sua velocidade desvairada, e, de outro, a facilidade de obter mão-de-obra barata e abundante, juntamente com lucros fáceis, “todas as bem-sucedidas instituições da metrópole repetem, em sua própria organização, o gigantismo sem meta do todo (…). O crescimento e multiplicação das grandes metrópoles foram, a um tempo, provas dessa tendência generalizada para a concentração monopolística, e o meio pelo qual ela foi efetuada” (idem, pág. 634-5).

Resulta que esse enorme organismo que é a metrópole, diferentemente da cidade que levava em conta as finalidades humanas de conforto e bem estar, “assinala a mudança de um sistema orgânico para um sistema mecânico, do crescimento propositado para a expansão sem propósito” (idem, pág. 644). A cidade como mãe que chama e acolhe se transforma em monstro cujos tentáculos tudo devoram, até mesmo os pequenos espaços e tempos de lazer de seus trabalhadores.

Amplia, além disso, o contraste entre pobres e ricos. Para estes, reserva o condomínio protegido, enquanto aqueles se submetem ao risco permanente da violência que rege as periferias mais distantes. Para uns, que podem pagar a conta, escola e saúde especial; para outros, os serviços públicos, que, tanto em quantidade quanto em qualidade, estão sempre aquém das necessidades da população. Até mesmo a política energética do modelo em vigência, no Brasil e em outros países, privilegia a locomoção individual em detrimento das alternativas e da qualidade dos transportes coletivos, causando por tabela enormes congestionamento metropolitanos.

A qualidade da vida e a ameaça de morte crescem paralelas ao elefantismo das grandes cidades. Não se trata somente das conseqüências sobre o meio ambiente (poluição visual e sonora ou contaminação do ar e das águas), mas também de um vírus ou bactéria que se desenvolve junto com o crescimento desmedido do tecido urbano. Vírus e bactéria, neste caso, são sinônimos de falta de saneamento básico, serviços públicos raros e precários, formação de “tribos urbanas”, ou quadrilhas, para não ofender nossos irmãos indígenas… Enfim, uma violência que abre chagas, feridas e cicatrizes visíveis e invisíveis por todo o espaço da metrópole.