Migrantes, vocês são uma carta de cristo
Pe. Alfredo J. Gonçalves
Os migrantes, em suas idas e vindas, escrevem uma carta sobre o mapa-múndi, uma carta que de um modo ou de outro fica para a história. Não a escrevem tanto com as mãos ou com a cabeça, mas com os pés. Pés que carregam sonhos e projetos, que tropeçam e se ferem nas pedras do caminho, pés que deixam pegadas vivas em todas as estradas e em todas as direções.
Trata-se de uma carta marcada por ambigüidades e contradições. Suas linhas tortuosas e imprecisas traçam uma trajetória cada vez mais complexa. Dores e esperanças se mesclam na mensagem deixada pelos fluxos migratórios. Os passos dos migrantes, com seus anseios e decepções, convertem-se em letras, palavras e páginas – carta a ser permanentemente decifrada pelos especialistas da mobilidade humana.
A leitura dessa carta, seja do ponto de vista sócio-econômico ou político-cultural, seja do ponto de vista religioso, revela luzes e sombras. Entre as sombras, destacam-se as profundas assimetrias que dividem continentes, regiões e países, as injustiças e desequilíbrios sociais que levam milhões de pessoas a buscar cidadania fora da própria terra, a violência em todas as suas formas e graus, a luta tenaz e às vezes vã pela sobrevivência. Tudo isso desenraiza, desloca e põe em marcha multidões cada vez mais numerosas e em condições quase sempre precárias.
Quanto às luzes, elas brotam antes de tudo do interior mesmo de cada migrante, de cada movimento migratório, de cada povo que se move a faz mover a história. Os deslocamentos humanos levam nas asas do vento sementes de vida. Nesse vaivém intenso e contínuo misturam-se resistência, teimosia, combate contra muros visíveis e invisíveis e busca de uma pátria mais acolhedora. Nesta perspectiva, não é difícil parafrasear Euclides da Cunha: “o migrante é antes de tudo um forte”!
O apóstolo Paulo, por sua vez, na Segunda Carta aos Coríntios, nos oferece uma luz de como ler por um outro prisma essas cartas que os migrantes escrevem com seus sonhos e seus pés. Diz ele aos cristãos de Corinto: “De fato, é evidente que vocês são uma carta de Cristo, da qual nós fomos o instrumento; carta escrita não com tinta, mas nas tábuas de carne do coração de vocês” (2Cor 3, 1-6).
Embora a mensagem de Paulo não esteja dirigida aos migrantes, não custa dar-se conta de como estes, no mapa intrincado de suas trajetórias, vão escrevendo e reescrevendo os valores de suas expressões culturais e religiosas. Constituem, por isso, não somente uma carta de denúncia sobre uma sociedade desigual e excludente, mas também uma oportunidade de evangelização, dado o intercâmbio de vidas e valores. Como diz o Documento de Aparecida, “os migrantes devem ser acompanhados pastoralmente por suas Igrejas de origem e estimulados a se fazerem discípulos e missionários nas terras e comunidades que os acolhem, compartilhando com eles as riquezas de sua fé e de suas tradições religiosas” (Doc. Aparecida, Nº 415).
Verdadeiros profetas, os migrantes criam recriam encruzilhadas onde encontram e reencontram vivos testemunhos de superação. Nos novos areópagos modernos ou pós-modernos, eles são porta-vozes de um Deus sempre desconhecido e de Quem sempre teremos sede. Se, por uma parte, são vítimas que fogem de situações adversas, por outra, são protagonistas que buscam cidadania digna e justa. Protótipos da condição peregrina de toda a trajetória humana sobre a face da terra. Daí que o campo da mobilidade humana vem sendo considerado, progressivamente, como um lugar teológico privilegiado.