Moisés, Maomé, Jesus: Leituras do sagrado e fundamentalismos
CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos)
Todas as culturas produziram religião. As religiões respondem a necessidades fundamentais da humanidade. Dentro delas elaboram-se maneiras de enfrentar as chamadas grandes questões existenciais da humanidade: De onde viemos? Por que vivemos? O que acontece conosco ou para onde iremos após a morte? E existe alguma força que interfere no curso de nossas vidas pessoais e coletivas? As religiões ajudam as culturas a elaborarem sentidos para sua existência de forma a permitir a convivência social, a fornecer identidade e dignidade para os grupos humanos.
As religiões nascem e se desenvolvem a partir de práticas e propostas significativas para um determinado grupo de pessoas. Aparecem como uma coisa boa. Nascem de uma experiência de vida, de promoção da vida, de resgate da dignidade, de libertação, ou de paz e salvação. Surgem possibilitando uma elevação do patamar da qualidade de vida.
Mas, se é assim, por que a história nos relata tantos massacres e tantas guerras promovidas em nome de religiões? Aqui não estamos pensando nem abordaremos todas as religiões de modo genérico. Trataremos principalmente das três principais religiões de matriz semita que estão mais recentemente ocupando os noticiários e também são as que chegaram mais próximo de nós: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Moisés, Jesus e Maomé. Não falaremos diretamente das religiões dos povos nativos do Brasil e do continente americano, nem das religiões africanas e afro-brasileiras. Mas podem ser consideradas indiretamente, já que muitas vezes na história, estas religiões foram atacadas e suas culturas e seus povos foram destruídos por representantes das religiões semitas. Mas se as religiões nascem como coisas boas para o povo, como “boas notícias”, o que acontece no desenvolvimento e na compreensão das religiões para que elas passem a legitimar ataques, violências, até a morte, a guerra e a destruição de outros povos? Geralmente nos referimos a estas manifestações mais radicais como manifestações de “fundamentalismo”. Mas precisamos também ter em mente que nem todo fundamentalismo expressa-se de formas truculentas e agressivas, e que ao falar sobre o fundamentalismo devemos utilizar o conceito no plural, uma vez que “existem diferentes fundamentalismos conforme os diferentes contextos culturais e religiosos em que nasceram e atuam os movimentos, grupos e organizações extremistas.”(1)
Um equívoco epistemológico
Em primeiro lugar é necessário uma tomada de posição no sentido epistemológico. As religiões precisam ser compreendidas, também pelos seus próprios membros, de forma crítica, assumindo “conscientemente a evidência de que o ser humano e nenhum nível, tampouco em nível de conhecimento pode pretender ser o sujeito possuidor de um ponto de vista absoluto. Essa pretensão é absurda e contraditória. A condição insuperável da finitude faz dela uma ilusão impossível. […] Na religião, como em qualquer outra área da experiência do conhecimento do ser humano, a finitude humana significa um estar obrigado ao exercício ou para a práxis da tolerância, que é também um exercício da escuta e da tolerância do outro.” (2)
Fornet-Betancourt segue afirmando que é um fato indubitável “que toda a cultura desenvolva sistemas referenciais próprios que se condensam em tradições que, por sua vez, sirvam como fronteiras para tudo o que resulta familiar e compreensível no interior dessa cultura. Não obstante esse fato de que uma cultura possa prover o ser humano que nela nasce de um horizonte com sentido, não suprime a condição de finitude. Esse horizonte é o horizonte de um ‘umbral’ cultural, quer dizer, da ‘fronteira’ traçada pelas experiências de uma grupo humano. Por isso nenhuma cultura pode pretender ignorar essa condição da finitude, e elevar sua tradição, seus sistemas de referências etc. à categoria da tradição humana sem mais. Nenhuma tradição humana pode dizer de si mesma que é a tradição humana.” (3)
Uma das causas da intolerância e da violência legitimadas com leituras para a guerra de seus referenciais religiosos é sem dúvida o esquecimento desta condição, principalmente no discurso que impera dentro de largos setores das religiões acima mencionadas. No caso do cristianismo isto acontece também porque “o ocidente, a partir de sua expansão sistemática desde 1492, não se entende como uma região, mas como eixo da história universal, e confunde desde então o universal com sua própria tradição.”(4) Mas outra causa esta relacionada com a posse de um livro sagrado, considerado “a Palavra de Deus”, e ao qual se faz constante referência.
Livro sagrado: livro que salva, livro que mata
O que ocorre, pelo menos nas três religiões aqui analisadas, é que elas possuem um livro sagrado, uma Palavra de Deus. Por isso são também conhecidas como “religiões do livro”. Sucede que ao longo de suas histórias, judaísmo, cristianismo e islamismo, elaboraram livros e num determinado momento estes livros foram ungidos com caráter de santidade e foram instituídos como livros sagrados. Este é outro aspecto que precisa ser muito bem pesado na questão que nos propomos analisar. Livros, mesmo aqueles escritos por uma só pessoa em um curto espaço de tempo, são por si só obras polissêmicas, abertas a várias possíveis linhas interpretativas. Quanto mais o serão a Bíblia Hebraica, a Bíblia Cristã e o Alcorão, posto que devem o texto com que atualmente apresentam-se para nós ao trabalho redacional de incontáveis autores por períodos de tempo que variam entre meia centena de anos (Alcorão), mais ou menos três séculos (Bíblia Cristã) e quase um milênio (Bíblia Hebraica). Além disso, no círculo hermenêutico devem ser consideradas também todas as possíveis contextualizações a partir das quais estes textos são lidos. Assim um livro como o Alcorão, por exemplo, pode ser lido
“como um texto que fala de Deus e das coisas que um ser humano tem que fazer para estar em harmonia com Sua vontade; como um código normativo válido para as organizações sociais; como um texto de antropologia e de cosmologia; como um tratado de filosofia da história; e, por fim, como o código linguístico fundamental da nova língua, o árabe.” (5)
Mas a existência de um livro sagrado e a relação muito específica que se estabelece entre o crente e o livro é um aspecto decisivo. Pois “a existência de um livro sagrado e a relação particularíssima que se vem a criar entre o crente e o livro são aspectos que contribuem decididamente para uma definição mais precisa do perfil deste movimento religioso. De fato, só podemos falar de fundamentalismo quando estão presentes os seguintes elementos:
– crença no princípio da inerrância do conteúdo do livro sagrado, sendo este último assumido no seu todo como uma totalidade de sentido e de significados que não podem ser selecionados (eliminando, por exemplo, as partes mitológicas e aceitando as que apresentam, simultaneamente, uma validade histórica e universal) e interpretados livremente pela razão humana sob pena de uma deturpação da verdade que o livro sagrado contém;
-assunção do princípio da astoricidade da verdade e do livro’ que a conserva; astoricidade significa que a razão não tem poderes para perspectivar historicamente a mensagem religiosa nem deve ousar adaptá-la as novas condições que se vão produzindo no decurso dos tempos;
– baseado nos dois anteriores princípios, a crença de que é possível deduzir do livro sagrado um modelo integral de sociedade perfeita – superior a qualquer forma de sociedade humana existente, conforme o princípio da superioridade da lei divina sobre a lei terrena – pois a soberania política é legitimada somente pela soberania divina;
– por fim, a referência a um princípio absoluto estimula a imaginar a possibilidade de decalcar a «cidade terrena» sobre o modelo ideal de sociedade apresentado no livro sagrado, numa tensão entre o presente e o passado que atribui ao primado do mito da fundação da identidade de um grupo, ou de um povo inteiro, a função simultânea de assinalar o caráter absoluto do sistema de crenças a que cada crente deve aderir e o sentido profundo de coesão que une todos aqueles que a ela pertencem (a ética da fraternidade).(6)
Esta longa citação se impôs porque, segundo Pace e Stefani, “estes quatro elementos constituem as características distintivas do fundamentalismo e, por isso, podemos assumi-los como quadro que permite uma definição suficientemente ampla capaz de abarcar as várias formas do fenômeno em questão.”(7)
Livro Sagrado: antes de tudo fruto da história humana
Acontece que estes livros permitem leituras para a paz como permitem leituras para a guerra por que nasceram dentro da história humana e são, por isso, marcados pelas virtudes e pelas sombras da humanidade.
Assim leituras para a guerra são também possíveis porque já no próprio processo de constituição tanto destas religiões como de seus livros, em certos estágios elas são apropriadas por determinados grupos sociais que as integram dentro de um projeto de poder. Num primeiro momento essas religiões existem no meio dos seus povos como tradição oral, viva na memória, nas histórias, nas práticas e nas instituições de suas sociedades. Nesse momento não estão ligadas a estruturas estatais, monárquicas e ou imperiais. Mas depois serão integradas dentro da organização sócio-política de um estado e/ou império. O que acontece é que será somente nesse estágio que essas religiões começam a ser codificadas em textos escritos. É nessas condições que a religião que circulavas entre o povo nas tradições orais ganhará expressão escrita. Torna-se livro. Na forma de livro, escrita, lei do rei, do estado, do imperador, a religião passará a desempenhar outros papéis, será, porém, orientada por uma hermenêutica do poder e para o poder. É claro que a codificação escrita não mata, não esgota e nem faz desaparecer a religião viva nas histórias orais e na memória do povo, que a instituiu, antes da escrita, como uma palavra boa, como uma Palavra de Deus, como uma religião. O que acontece é que estas duas formas dessas mesmas religiões coexistem, não só no meio do povo, mas também no corpo dos escritos. Coexistem nos textos, ora colidindo, ora competindo, ora excluindo uma a outra. Coexistem porque o livro para ser sagrado precisa nutrir-se do sagrado instituído antes pelo povo, precisa permitir que o povo se reconheça, se identifique com as palavras escritas, senão não terá a força almejada. Assim os textos sagrados, e a história destas três grandes religiões são como que atravessados por dois riachos de águas abundantes: de um deles, porém, se tiram águas para a guerra, do outro se tiram águas para a paz e para a vida.
Moisés
No caso da religião de Israel, embora o livro sagrado, inicie com a narrativa da criação do mundo, o surgimento do povo e da fé de Israel está ligado com o que ficou conhecido como o Êxodo: a libertação dos escravos da opressão do faraó do Egito. Hoje se sabe que se, por um lado, o grupo dos escravos que se libertaram da opressão egípcia não foi tão grande como se pode inferir de uma leitura mais apressada e superficial dos textos bíblicos – que fala em 600.000 homens, sem contar as mulheres e crianças, além de uma mistura de gente (Ex 12, 37-38) – por outro lado essa história apresenta-se grandiosa, engrandecida, inchada por conter dentro de si, nas linhas e entrelinhas muitas outras histórias de opressão e libertação. A história dos escravos tornou-se o paradigma preferido para denunciar processos de opressão e para contar experiências de libertação. Assim dentro do que hoje conhecemos como o “Êxodo” temos, por exemplo, também a experiência dos milhares de camponeses cananeus que se libertaram da exploração a que duplamente estavam submetidos nas mãos dos reis cananeus sob o poder do império egípcio. Estes, sem nunca terem pisado no Egito, também foram libertados da opressão egípcia, pois a terra de Canaã estava submetida ao império dos faraós.
Uma nova experiência de Deus
Esta experiência de libertação foi interpretada como fruto de uma intervenção de Deus. Um Deus completamente diferente dos outros deuses conhecidos. Um Deus dos oprimidos, que vê a miséria, ouve o clamor, conhece o sofrimento e desce para libertar os oprimidos (Ex 3,7-8). Essa experiência de Deus foi radicalmente diferente de todas as outras experiências de Deus que conheciam na época. Os Deuses mais poderosos, vencedores eram os deuses dos reis cananeus, dos faros egípcios. Havia entre os Deuses uma hierarquia semelhante a que havia entre as pessoas. Não se conhecia nenhum Deus libertador dentro das teologias até então existentes. Os escravos do Egito é que são portadores desta revelação: Existe um Deus contrário à opressão e à exploração. Um Deus que milita para libertar os oprimidos. Essa experiência de Deus é a pedra fundamental para a constituição de Israel, que se concretizará, após a derrubada das cidades-estado cananeias e com a libertação dos camponeses cananeus, no estabelecimento de uma sociedade tribal. Nas tribos a terra e o poder são partilhados, e nelas as relações são mediadas por leis coerentes com o espírito do Deus libertador, leis que impedem o acúmulo de terras e bens, a opressão e a exploração, e que promovem a solidariedade.
A Monarquia apropria-se do Deus dos camponeses
Israel tribal existe mais ou menos desta forma, sem poder centralizado, entre os anos 1250-1050 a.C. E entre 1050-950 a.C. processos de acumulação de riquezas e poder militar rompem essa sociedade, fazendo surgir uma elite que institui a monarquia e consolida as relações assimétricas. Pela longa duração desse processo podemos ver que ele não aconteceu sem resistência. A monarquia significa uma centralização de poder, que se faz explorando o trabalho e a produção dos camponeses. Estes são obrigados a entregarem parte de sua produção agro-pastoril, suas filhas e filhos para trabalharem nas obras e guerras decididas pela corte (1 Sm 8,11-17). Essa grande modificação introduzida na sociedade exige uma legitimação, que será buscada construindo um grande templo ao Deus libertador a antiga cidade cananeia de Jerusalém e codificando uma teologia, uma espiritualidade e uma liturgia oficial a partir do culto mais importante entre as tribos, o culto ao Deus YHWH. E dali em diante Israel terá duas principais vertentes teológicas: uma a que vem da libertação e da partilha da terra, viva na memória, nos vários santuários tribais e entre as organizações camponesas remanescentes do tribalismo que, de tempos em tempos, é retomada e reapresentada pelos profetas; outra, a teologia oficial da corte e do Templo de Jerusalém, dos sacerdotes, escribas e funcionários do rei. É então somente a partir da instalação da monarquia, principalmente com Davi e Salomão que a Bíblia começará a ser escrita. Estas duas teologias estão entrelaçadas nos textos sagrados do Judaísmo.
Jesus
Algo semelhante sucede no movimento de Jesus. Jesus, como um reformador da fé de Israel busca resgatar os princípios e as práticas que deram origem ao povo de Israel. Bebe, inspira-se na vertente popular do Deus libertador do Êxodo, na partilha da terra e do poder experimentado no tribalismo, presentes nas mais genuínas tradições de Israel. De mãos dadas com os profetas de Israel, busca superar o legalismo, o ritualismo que se haviam instalado em Israel. Resgata as práticas de solidariedade acolhendo a pessoas pobres, doentes que por serem consideradas impuras eram excluídas do convívio social. Ataca as elites que desta forma se autolegitimavam como justas e puras e cumpridoras da vontade de Deus. Anuncia o julgamento de deus para as elites e o Reino de Deus para os pobres. Seus seguidores organizados em pequenas comunidades domésticas nas periferias das grandes cidades do império romano, traduziram a proposta de Jesus para este contexto criando comunidades de partilha do pão, resgatando a dignidade dos pobres, dos sem-terra, sem-lugar, sem cidadania, sem-liberdade. Comunidades reunidas em torno de mesas onde se desfaziam todas as hierarquizações e discriminações existentes tanto nas comunidades judaicas mais tradicionais como na sociedade greco-romana em geral. Ali já “não se distingue mais o judeu do grego, o homem da mulher, o senhor do escravo” (Cf. Gal 3, 27 e 28). A mesa do pão partilhado, em nome do pai e do filho, torna a todos os irmãos no mesmo espírito do Deus libertador, e a partir dela cresce uma ética que deve invadir todas as relações que perfazem o cotidiano dos seguidores e seguidoras de Jesus. Começam a viver concretamente aqui e agora os sinais do que será o Reino de Deus. Assim o cristianismo cresce e se espalha por todo o império. Para reforçar e defender esta prática surgem os escritos que comporão o novo testamento.
Porém dentro do cristianismo, emparedado pelas perseguições contra ele, movidas pelo império romano no final do primeiro e no segundo século, crescem algumas correntes que acentuam o patriarcalismo, o espiritualismo e o ritualismo, onde a ética que o distinguia do império se desvanece, correntes que estão prontas para aceitar o imperador em seu meio, e assim certa linha do cristianismo, mais ou menos em torno do ano 400 d.C., torna-se a religião oficial do império romano. A partir dessa aceitação começamos a ter também duas formas de ver o cristianismo. Uma, mais coerente com a vida de Jesus e das primeiras comunidades e outra, instituída e organizada a partir do poder e integrada nos projetos de poder do império romano.
Um pouco diferente do processo do judaísmo é a questão dos escritos. Os escritos do Novo Testamento a estas alturas já estava elaborados. Mas a influência de Constantino se fará sentir na definição do Cânon cristão, na ordem dos livros dentro dele, e principalmente na estruturação do poder e da hierarquia dentro da igreja romana, e na elaboração teológica e na codificação doutrinal que se fará dentro desta nova hermenêutica cristã.
Essas duas vertentes perpassam a Bíblia e adentram na história cristã. Numa alinham-se os profetas, Jesus, e a fraternidade da mesa partilhada na igreja primitiva; da outra provêm a exigência dos sacrifícios, oferendas e tributos, o legalismo e o ritualismo que excluem os pobres e beneficiam e justificam as elites. Embora se refiram a um mesmo Deus, os conflitos entre eles revelam que seus Deuses são diferentes. Entretanto, estas diversas leituras incorporam-se ao texto bíblico e às teologias e fundamentam e possibilitam as várias leituras bíblicas para a paz e para a guerra existentes.
Maomé
Também no Islamismo se pode notar um hiato entre o “Alcorão oral” e o “Alcorão escrito”. Em outras palavras, entre aquilo que através da viva voz do profeta foi considerado revelação de Deus; e a fixação do cânon da vulgata oficial escrita do Alcorão.
Maomé, nascido em torno de 570 d.C., órfão muito cedo tem uma infância miserável, é criado por um tio, onde com dificuldades torna-se mercador. Depois casa-se com Khadija, rica herdeira de dois casamentos anteriores, com ela Muhamad tem vários filhos, que morrem precocemente, e umas quatro filhas, entre as quais Fátima, que era a sua predileta. Este casamento dá a Muhamad uma posição social e também mais tempo para si. Assim, os relatos referem-se á suas primeiras experiências extáticas quando tinha em torno de 35 anos de idade. Os habitantes da Península árabe adoravam muitos deuses e deusa e estavam separados por diversas crenças concorrentes, além de entre eles haverem seguidores do Judaísmo e também do cristianismo. Essa diversidade de divindades e crenças, aliadas às diferenças sociais, à diversidade de interesses políticos e comerciais, tornava o mundo árabe uma enorme colcha de retalhos, altamente compósito, fragmentado, dilacerado e hierarquizado, fraco e dominado na relação com os povos vizinhos. Mas esta diversidade era fonte de lucro para a oligarquia que controlava a cidade de Meca, entregue ao comércio, ávida de lucros e prazeres. No meio de um povo sem identidade definida, dividido e sem força, situação que a alguns beneficiava, mas que para a maioria era causa de submissão e pobreza, Maomé começa a pregar a igualdade, o amor, o repúdio à usura e a certeza de uma vida melhor no além-túmulo para quem assim procedesse.
Nesse ambiente a pregação de Maomé é marcada por uma solidariedade ética que decisivamente ultrapassava os limites das tradicionais pertenças étnicas, clânicas e religiosas. Irmanam-se frente a Deus e a suas leis. Atraía sobretudo os descontentes com as injustiças sociais e os desgostosos com as práticas das classes dominantes. Esta pequena comunidade ao ser ameaçada pelos grupos que não aceitam a nova proposta apresentada por Maomé, defende-se, inclusive militarmente. Isso já acontece após a Hégira, migração de Meca para Yathrib, depois será chamada de Al Madinat – Medina, a cidade. Também assim haviam agido as tribos de Israel.
Apesar de muitos percalços e perigos Maomé se fortalece e sai vitorioso e em 630 chega ao poder em Meca. Longe de mostrar-se vingativo com aqueles que o combateram, age com moderação e magnanimidade perdoando inclusive chefes dos seus inimigos. Embora tenha destruído cerca de trezentos dos ídolos adorados em Meca, e proibido a reprodução das formas humanas, procurou modificar o menos possível os rituais religiosos, inclusive mantendo a peregrinação anual e o caráter sagrado da Caaba, incorporando assim o principal rito árabe pagão ao islamismo, e designando Meca como o novo ponto focal da oração muçulmana, dessa forma deixou de ser um dissidente para tornar-se um reformador que cheio de amor por sua cidade natal resolveu purificá-la e fazer dela o centro social e religioso do Islã.
Maomé morre em 8 de junho de 632. E é só depois de sua morte que se coloca a questão da sistematização da palavra sagrada num texto definitivo. Maomé não deixou nada escrito de seu próprio punho. A redação do Alcorão ocorrerá somente depois de sua morte, entre os anos 644-656, em um momento preciso no qual a estrutura do califado começa a mudar de estatuto para se tornar a estrutura de poder de poderosas famílias dinásticas. Os 114 capítulos (em árabe: suras) são tradicionalmente divididos entre os que remontariam ao período inicial do profeta em Meca e outros que derivariam de Medina. No texto a ordem está invertida com relação a ordem histórica que foi de Medina para Meca. Da mesma forma como na Bíblia as coisas não são tão pacíficas como parecem. A organização dos textos reflete um plano coerente com as necessidades de um poder que sente a exigência de fundamentar a autoridade às novas organizações sociais e políticas que estavam sendo criadas.
Os capítulos que seriam oriundos de Meca refletem a condição extática do profeta, numa linguagem profética cifrada, típica, reforçando mais os aspectos de uma religião de liberdade individual. E nos de Medina, predomina a forma de artigos de um código jurídico, em linguagem prescritiva, tanto para o ambiente jurídico quanto para o ambiente ritual, com o intuito de padronizar o comportamento das pessoas, funcional aos aparelhos de poder do tempo em que o Texto sagrado é redigido e dotado da unção oficial. Mas aí já começam também os tempos de império e de violência
Concluindo
Para um mundo de convivência fraterna entre os povos, onde predominem as leituras dos textos sagrados para a paz muito ainda há por avançar. É claro que não é só uma questão de mudança de hermenêutica, mas sem dúvida esta mudança é fundamental. Igualmente uma autocompreensão menos arrogante, historicamente situada, de nossas tradições religiosas, o reconhecimento dos erros e um pedido de perdão pelas violências cometidas. Entretanto a efetividade destas atitudes se verificará com o desmantelamento das estruturas e doutrinas que tornaram possíveis e aceitáveis estas violências no passado. Se este desmantelamento não ocorrer o pedido de perdão será inócuo, pois as atitudes violentas continuarão aninhadas nos velhos suportes e neles encontrarão apoio para suas novas estocadas. É preciso contemplar no mistério da Vida este grande mistério ao qual a humanidade dá muitos nomes. Não devemos adorar um Deus tão pequeno que possa que caiba totalmente dentro de nossos livros sagrados, ou de nossas culturas e religiões. Quando se perde a noção do mistério acaba a humildade, entra a prepotência e vai se acabando a humanidade, porque afinal de contas humildade e humanidade têm, ambas, raiz na finitude do húmus. Mas acima de tudo esta atitude de superioridade nos leva a sermos algozes da vida, na inferiorização do outro, da outra, sejam estes humanos ou não, e não permite que experimentemos com profundidade o prazer se ser aprendizes e co-autores da grande sinfonia da vida em toda a sua tremenda e complexa diversidade.
Luiz José Dietrich
Referências Bibliográficas
FORNET-BETANCOURT, Raúl, Religião e interculturalidade, (Tradução de Antônio Sidekum), São Leopoldo : Sinodal/Nova Harmonia, 2007.
PACE, Enzo, Sociologia do Islã. Fenômenos religiosos e lógicas sociais, (Tradução de Ephraim Ferreira Alves), Petrópolis : Vozes, 2005.
PACE, Enzo, STEFANI, Piero, Fundamentalismo religioso contemporâneo. Raízes islâmicas, protestantes, hebraicas, induístas (sic!). Leitura fundamentalista da Bíblia. (Tradução de José Jacinto Correia Serra), São Paulo : Paulus, 2002.
KAMEL, Ali, Sobre o Islã. A afinidade entre muçulmanos, judeus e cristãos e as origens do terrorismo. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 4ª impressão, 2007.
ARMSTRONG, Karen, Em nome de Deus. O fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo. (Tradução de Hildegard Feist), São Paulo : Companhia das Letras, 2001.
ARMSTRONG, Karen, A Bíblia. Uma biografia. (Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges), Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2007.
PETERS, F. E., Os monoteístas. Volume I: Os povos de Deus. (Tradução de Jaime A. Clasen), São Paulo : Editora Contexto, 2007.
SOARES, Sebastião Armando Gameleira, “Reler Paulo. Desafio à Igreja”, em: A Palavra na Vida, 79/80, São Leopoldo : CEBI, 1984.
BOHN GASS, Ildo, Uma introdução à Bíblia, volumes 1-8, São Leopoldo : CEBI/Paulus, 2002-2005.
BARRERA, Julio Trebole, A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã. Uma introdução à história da Bíblia. (Tradução Pe. Ramiro Mincato), Petrópolis : Vozes, 2ª edição, 1999.
Maluca
jan 06, 2010 @ 17:36:23
Devem por a historia muito mais curta!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Quem vai a ler tem de ler isto tudo