Morte na Fronteira
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
A notícia é estarrecedora: 72 pessoas, incluindo homens e mulheres, são encontradas mortas em San Fernando , estado de Tamaulipas, México, a 160 km ao sul de Browsville, Texas, Estados Unidos. Tudo indica que se trata de um conflito entre os grupos que controlam o tráfico de seres humanos na fronteira entre México e Estados Unidos. Dos 72 corpos encontrados, há cidadãos de El Salvador, Honduras, Equador e quatro brasileiros. De acordo com artigo da Folha de São Paulo, trata-se de “resultado de brigas do cartel do Golfo” (Caderno Mundo, 26 de agosto de 2010).
Não é a primeira vez que os emigrantes/imigrantes, atraídos e iludidos por organizações internacionais, encontram uma morte trágica nas zonas fronteiriças entre os países pobres e os países ricos. Bastaria um olhar retrospectivo às últimas décadas para dar-se conta de quantas pessoas já foram barbaramente assassinadas ou morreram na travessia de desertos, florestas e mares que ligam o mundo desenvolvido ao mundo subdesenvolvido. Testemunhas disso são, por exemplo, Ciudad Juárez, no México; mar Mediterrâneo, entre África e Europa; mar do Caribe com golfo mexicano; e Istambul, como elo de ligação entre Ásia e Europa.
Espaços de fronteira, solo ambíguo e escorregadio, uma espécie de não lugar. O dinamismo migratório dos chamados “complexos fronteiriços”, segundo alguns analistas, constitui hoje um retrato vivo da economia globalizada. Enquanto as mercadorias, o capital, a tecnologia e os serviços têm trânsito livre, os trabalhadores encontram inúmeras barreiras, seja do ponto de vista legal, seja do ponto de vista socioeconômico e cultural.
Fronteira se torna, ao mesmo tempo, terra de ninguém e terra aberta a todas as possibilidades. Ali se mesclam e se confundem distintas línguas, bandeiras, moedas e povos de todas as raças e culturas. Ali tensões, conflitos e solidariedades convivem lado a lado. Sonhos e pesadelos cruzam e recruzam de um país para outro. Desfilam por esse terreno minado os pés ansiosos e os olhares esperançosos de imigrantes, exilados, refugiados, deportados, entre outros.
Autoridades policiais, “coyotes” e quadrilhas do tráfico disputam pessoas e dólares. Os migrantes se convertem, simultaneamente, em vítimas, problemas, e sujeitos. Vítimas, na medida em que são duplamente explorados: pelas redes criminosas encarregadas de vender falsas ilusões aos jovens do terceiro mundo que buscam um futuro mais promissor e pelos governos ou empresários que necessitam dessa mão-de-obra barata para os serviços mais sujos e pesados, perigosos e mal remunerados.
Se tais imigrantes representam uma solução fácil para o trabalho precário e degradante, com o tempo acabam tornando-se um problema para os países de destino, especialmente quando se trata de estender a eles o direito de cidadania plena. O mais frequente é permanecerem nos porões da sociedade em situação de clandestinidade, o que fecha a porta para os direitos básicos de todo ser humano.
Mas, além de vítimas e problemas, os emigrantes/imigrantes são também sujeitos. O simples ato de migrar os converte em profetas, às vezes inconscientes, de uma cidadania universal, sem fronteiras. Suas idas e vindas, por um lado denunciam situações de pobreza e exclusão social nos países de origem, que sequer conseguem oferecer-lhes o direito a uma cidadania mínima, obrigando-os à saída não raro forçada. Por outro lado, anunciam a necessidade urgente de mudanças quer nos modelos políticos de cada país, quer nas relações internacionais.
Nesse sentido, a fronteira não deixa de ser um símbolo de tais transformações econômicas, políticas, sociais e culturais. Quem passa pela experiência de fronteira – vale dizer, de não lugar – tende a estar mais aberto a uma reestruturação do conceito de cidadania. Se aqueles que nascem em berço de ouro costumam ter receio de mudanças, quem experimenta a insegurança e o vaivém do caminho e da área indefinida da fronteira as anseiam e as buscam. São protagonistas da esperança. Em semelhante perspectiva, o não lugar da fronteira pode converter-se no melhor lugar para lançar as raízes de um novo lugar. A experiência da estrada e da terra de ninguém, ou seja, da transitoriedade e da provisoriedade, podem abrir uma porta privilegiada para a vontade de mudanças profundas e estruturais.
Em termos evangélicos, não podemos esquecer que Jesus nasce e morre fora dos muros da cidade, respectivamente em Belém e em Jerusalém. “Não havia lugar para eles”, diz o evangelista. A Sagrada Família passa pela experiência da migração, de cruzar e recruzar a fronteira, do não lugar. Conclui-se que o Reino de Deus, o novo lugar, mergulha suas raízes nesse espaço ambíguo do “não lugar como sonho e promessa de novo lugar” (Lc 2,7). A encarnação do Verbo e a morte na cruz, ocorridas em solo apátrida, precedem a Ressurreição, abertura para a pátria definitiva.