Nascido para as coisas maiores
Predestinado para coisas mais elevadas, Dom Helder jamais se acostumou com a miséria do povo e nunca achou normal esse estado de coisas porque ele fere o rosto de Deus e contraria sua vontade, por isso decidiu, obstinadamente, com a ternura e a coragem de pastor, levantar a voz e lutar contra ela com o desejo de derrotá-la.
Depois de dezoito anos do lançamento da encíclica Rerum Novarum do papa Leão XIII em que ele apontava “coisas novas” sobre a situação dos trabalhadores, falava, claramente dos seus direitos e das responsabilidades do capital e do trabalho e defendia o direito dos trabalhadores de se organizarem em associações na tentativa de conseguirem salários mais justos e condições de trabalho mais dignas, nascia Dom Helder.
No tempo de sua formação, no Seminário da Prainha, ele passa a viver essa realidade dramática: “Não pode haver capital sem trabalho nem trabalho sem capital”. Certamente é o início da grande aventura de Dom Helder, abraçando aquilo a que se destinara: “A coragem o conduziu ao que é mais elevado, às coisas maiores”- “Ad maiora nati sumus” – Nascemos para coisas mais elevadas.
Coincidência ou não, ordenado sacerdote em 1931, ano da comemoração dos quarenta anos da Rerum Novarum, o Papa Pio XI lançava a Encíclica Quadragesimo Anno, apontando para a reconstrução da ordem social, ao mesmo tempo, denunciando os efeitos da concentração do poder econômico sobre a grande massa de trabalhadores. É um grito, é um clamor pela justa distribuição da riqueza segundo as exigências do Evangelho, do bem comum e da justiça social.
Em 1961, nos setenta anos da Rerum Novarum, com a Encíclica Mater et Magistra, o Papa João XIII afirma que a Igreja é Mãe e Mestra que prega um Cristianismo que favorece o progresso social; lamenta, profundamente, a crescente distância entre as nações pobres e as ricas; a corrida armamentista e ainda a grande angústia dos campesinos e dos agricultores. Por fim, convoca o Papa da bondade os cristãos para trabalharem em favor de um mundo mais humano, mais justo e mais digno.
No dia 25 de janeiro de 1959, há exatamente 50 anos, “O Bom Papa João” surpreende a Igreja interna e externamente, ao convocar o Concílio Vaticano II cuja realização terá seu início três anos depois em 1962 e já trabalha na formação da comissão preparatória. Nos resultados visíveis do Concílio lá estava o dedo do “homem pequeno na estatura”, mas grande nos sonhos, nos ideais, e que desejava a atualização da Liturgia, buscando, entre outras coisas, a celebração das cerimônias religiosas na língua vernácula de cada povo e com uma participação comunicativa. Voltou-se, também, para o sentido da colegialidade, do ecumenismo e da liberdade religiosa. Queria ele uma Igreja mais simples e mais voltada para o povo. Uma Igreja povo de Deus em comunhão e participação.
Ninguém melhor que Dom Helder Câmara compreendeu todo o contexto da Igreja, a partir de Leão XIII, mostrando os desafios, apontando as “coisas novas” e chegando ao maior evento do século XX, o Concílio Vaticano II. Com a Gaudium et Spes, falava das alegrias e das esperanças, das tristezas e das angústias dos homens de hoje, sobretudo, dos que mais sofrem.
Sua ação pastoral, em meio às novidades do Século XX, nos leva a acreditar que, no Brasil nos dias atuais, apesar das dificuldades e da pobreza, criou-se na população uma consciência dos seus direitos, tornando-a capaz de lutar por um mundo diferente, por um mundo mais humano e melhor, o mundo sonhado por Deus.
Por isso, na feliz coincidência do centenário do artesão da paz e do cinqüentenário da convocação do Vaticano II, não temos dúvida em afirmar que Dom Helder, como todo cristão, nasceu para coisas mais elevadas – “Ad maiora nati sumus”.
Pe. Geovane Saraiva