NATAL – Saudade de Deus
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
As festividades do Natal costumam alargar o coração e a alma, dirimir tensões e conflitos, aproximar coisas e pessoas, trazer à memória carinhosas lembranças. O brilho das luzes e das cores, o encanto do presépio e da música própria, a singeleza das imagens e dos enfeites, a troca de presentes e a atmosfeta natalina, o comportamento mais aberto e solidário para com os outros – tudo concorre para despertar uma longínqua e estranha “saudade de Deus”. Não se trata apenas de algo que vem de uma infância longínqua ou da tradição familiar cristã, mas de um sentimento ao mesmo tempo conhecido e ignoto, estranho e confortante, que faz emergir um ambiente, um calor e um momento indefinidos. Espaço e tempo resvestidos de um véu que, simultaneamente, vela e revela um tesouro encontrado e logo abandonado num lugar sem nome nem endereço. Sim, tais festividades evocam emoções não de todo ignoradas, mas submersas pelos afazeres e pela correria que nos toma todo tempo.
Por isso é que os sinos do Natal dobram como se algo ou Alguém batesse à porta. Algo ou Alguém momentaneamente esquecido, mas que reside adormecido nas entranhas mais íntimas e profundas de cada ser humano. Seu toque é inconfundível, uma espécie de chave encantada, que abre um tesouro deixado de lado com certo descuido. Brasa sobre cinza, às vezes incultivada, mas que ao vir à tona descortina sensações tão caras quanto remotas. Inegavelmente, o período natalino nos transporta a um mundo secreto, chama viva mas apagada, do qual nos chega o reflexo de doces e ternas recordações. Resgata um mistério que mal conseguimos vislumbrar, porque envolto na neblina do tempo e das preocupações cotidianas. É como um canto de ninar, um perfume intenso, uma cor preferida, ou ainda como o famoso “biscoito molhado no chá” de Marcel Proust, o qual, na monumental obra Em busca do tempo perdido, lhe desperta múltiplas e diferenciadas “reminiscências do coração”.
O tempo natalício possui o dom de romper em muitas pessoas diques invisíveis e empedernidos, fazendo correr e cantar as águas de sensações inexplicáveis, mas, ao mesmo tempo, bem presentes e prementes no coração e na memória. Abre em nós um leque de olhares e sorrisos, gestos e toques, visitas e relações que mal reconheceríamos, mas que de repente se tornam familiares, e nos surpreendemos com nossas próprias ações, como se nos guiasse a estrela de uma alegria incontida. As distâncias se encurtam, alguns venenos parecem derreter-se como que por magia e nos aproximamos com maior facilidade uns dos outros. Isso vale não apenas para o ambiente da família e dos amigos, mas também para os lugares de vizinhança, de trabalho, de lazer, de esporte, de turismo… Tênues laços, muitas vezes prestes a desfazer-se, se refazem e se fortalecem. Tanto do ponto de vista pessoal e familiar quanto do ponto de vista comunitário e sociocultural, criam-se novos canais comunicantes. Não há dúvida que a celebração do nascimento de Jesus torna o terreno em que pisamos mais fecundo à amizade, aos relacionamentos humanos, à solidariedade com os pobres e necessitados e ao amor em sentido amplo.
Não sem razão os relatos do nascimento e da infância de Jesus, nos Evangelhos de Mateus e Lucas, falam da alegria e do louvor dos anjos, da surpresa e do despertar dos pastores, da manjedoura e do calor dos animais, da chegada dos reis do Oriente com ouro, incenso e mirra para o Menino que acabara de nascer. Não sem razão Francisco de Assis iniciou a tradição do presépio, procurando retratar o mistério oculto nessas páginas cheias de poesia dos evangelistas citados. Além disso, a pobreza e simplicidade, a nudez e o exílio de José e Maria, bem como o véu da noite e a presença da estrela que guia os magos, nos tocam profundamente. Fazem vibrar cordas musicais até então silenciosas e mal conhecidas. Sentimo-nos tão próximos ao drama desses estrangeiros, num momento e hora absolutamente inusitados, que as barreiras da discriminação e do preconceito, ou simplesmente os cuidados com a prudência diante dos demais, se desvanecem no ardor da Boa Nova anunciada e por tanto tempo esperada. As cercas de separação parecem quebrar-se com a força represada dessa grandiosa novidade. A solidão da pobre família de Nazaré em meio à indiferença, “pois não havia lugar para eles dentro de casa” (Lc 2,7), a fúria do rei Herodes pelo temor de um concorrente ao trono, como também os cuidados da maternidade comparados ao rigor de um ambiente tão inóspito, nos fazem tomar partido pelos protagonistas de semelhantes relatos.
Consciente ou inconscientemente, nos transportamos para junto dos pais na gruta de Belém, acompanhamos os pastores e os reis que de longe visitam o recém-nascido. Uma onda de misericórdia e compaixão percorre nossas entranhas, sacode a apatia costumeira e como que nos põe em marcha em direção ao próximo. No dizer do Papa Francisco, “non aver paura della tenerezza e della bontà!” (não tenhamos medo da ternura e da bondade!). Deus nos visita, bate à porta como nos recorda o Livro do Apocalipse (Ap 3,20) e, àquele que lhe abre, dispõe-se a sentar com ele à mesa, num gesto de companhia, partilha comensalidade. A abertura à visita de Deus, porém, não se esgota nesse gesto tão antigo quanto a humanidade e tão característico do profeta de Nazaré. Amplia-se a um número crescente de pessoas, com especial atenção para as mais infefesas e excluídas, mais solitárias e abandonadas. Ou seja, abrir a porta ao Pai significa, contemporaneamente, franqueá-la aos irmãos e irmãs. Aliás, é o que rezamos diariamente, com frequência mais de uma vez ao dia: quando dizemos “Pai nosso” nos comprometemos com a busca do “Pão nosso de cada dia”. “Nosso” e não “meu” – tanto o Pai como o pão!
Convém ter em conta que essa visita de Deus se dá em meio aos ruídos de uma publicidade estridente, de um consumo exagerado e de festas marcadas, não raro, pela abundância e o desperdício. O lado positivo da alegria e do encontro vem mesclado com o lado negativo do contraste entre pobreza e riqueza, luxo e miséria, opulência e fome. Em meio a tanto “barulho”, como reservar um tempo para o encontro pessoal, familiar ou comunitário com Deus? Talvez esteja aqui um dos maiores desafios das festividades relativas ao Natal. De um lado, a prática agitada, rumurosa e dispersiva do comércio e da exterioridade natalina; de outro, a necessidade do silêncio interno e externo na busca de uma intimidade que possa saciar a sede (saudade) da presença divina. Mais grave ainda, tanto mais fortes os apelos e o fascínio das compra e do ativismo, tanto mais premente o desejo do encontro com Deus. Nessa hora, para que lado pende o fiel da balança? Para aqueles que já experimentaram a extrema sensibilidade e delicadeza da Palavra viva – que chama nutre e envia – a agitação febril que circunda os dias de Natal vem acompanhada pela sedução de uma voz interior, inconfundível, em que Deus nos convida à dupla conversão pessoal e social. Voz que nos impele a abrir o coração e a porta a Ele e aos irmãos. Em geral, que tendência seguimos? Será possível conciliar as duas dimensões, os dois apelos? Não se trata, evidentemente, de iliminar a festa. Mas como transfigurar a euforia externa numa alegria serena e íntima com o Senhor que vem e renova a promessa do “novo céu e da nova terra (…), onde “nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor” (Ap 21,1-8)?
Resulta que o encontro com Deus nunca se reduz a um eu-tu intimista e espiritualizante. Além dessa dimensão pessoal, se é verdadeiro, jamais será estéril do ponto de vista da ação solidária. Tem sempre implicações pastorais, sociais e políticas sobre o contexto histórico, uma vez que é no espírito de Deus que “vivemos, nos movemos e existimos” (At17,28). A espiritualidade cristã não pode ser desvinculada do compromisso com a transformação de um mundo que nega o projeto de Deus. Rezar e refletir sobre a Palavra, meditar e contemplar seu sentido mais profundo, por uma parte; e participar do combate contra toda espécie de opressão e exploração, por outra, constituem duas faces da mesma moeda. A mística cristã, vale lembrar, não se configura como fuga do mundo, mas presença em meio a seus conflitos e problemas, incongruências e contradições. Trata-se da dimensão socio-política da mensagem evangélica com vistas à construção da justiça e da paz. O “discipulado criativo”, na expressão de Ernest Wolf, nos chama à missão e esta, a exemplo da prática de Jesus, reabre o horizonte da história, arrancando-alhe as rédeas das mãos dos tiranos e das tiranias de todos os tempos, lugares e espécies. Isso só é possível graças “à orientação da esperança cristã direcionada para o futuro do Reino de Deus e do homem” (J. Moltman, em Teologia da Esperança).
Roma, Itália, 17 de dezembro de 2013