No final de tudo, haverá justiça
Dom Odilo Pedro Scherer
Nas celebrações da liturgia católica deste período do ano aparece mais vezes a referência ao julgamento de Deus sobre o homem e a História. De fato, o Credo da Igreja professa que Jesus Cristo, elevado à glória de Deus, “de novo há de vir para julgar vivos e mortos”. Desde as origens do cristianismo a perspectiva do Juízo Final serviu para os cristãos como critério para ordenar a vida cotidiana, apelo à consciência e estímulo a uma vida responsável e digna – e, ao mesmo tempo, como motivo de esperança.
Geralmente, a ideia do julgamento divino, com nuances diversas, faz parte das religiões teístas e tem sua base no simples pressuposto que o homem não é senhor absoluto de sua vida e da História, nem juiz soberano de si mesmo. Se, de um lado, possui o livre-arbítrio e a capacidade de escolher, ele também tem responsabilidade sobre os seus atos e deve responder perante alguém que, em última análise, lhe faça justiça. O homem não é o deus de si mesmo.
Deixemos de lado o aspecto aterrador do Dies Irae – o Dia da Ira -, muitas vezes relacionado com o julgamento divino; e, da mesma forma, as fantasias criadoras dos artistas, expressas em cenas de desforra e condenação, como no grande afresco de Michelangelo na Capela Sistina. Quero deter-me no julgamento final de Deus enquanto é motivo de esperança. Esse pensamento foi exposto, de maneira magistral, pelo papa Bento XVI na encíclica Spe Salvi (Salvos na Esperança) de 2007.
A História universal está marcada por profundas injustiças, que aparecem de maneiras muito concretas: desrespeito à pessoa e à sua dignidade, sofrimento de inocentes, desprezo e insensibilidade diante do próximo, desonestidade, corrupção, prepotência, violência… O mundo segue adiante, deixando pelo caminho as vítimas da injustiça. Bem que há tentativas para corrigir algo, mas com quanta dificuldade! E os males continuam. Quem fará justiça aos deserdados da família humana e àqueles que já pereceram carregando injustiças nunca reparadas? O senso comum e a consciência moral não aceitam conformar-se e clamam por justiça; no entanto, a experiência mostra que a justiça dos homens é e será sempre imperfeita, quando não causa de novas injustiças. O que é humano traz a marca da falibilidade.
Estará este mundo fatalmente entregue a si mesmo, sem que a sede de justiça possa ser apagada?
Terão os injustos e prepotentes o triunfo final, devendo os inocentes e injustiçados resignar-se diante das sentenças capengas dos homens, sem haver quem lhes assegure, finalmente, o direito?
Farão bem aplacando na vingança a sua sede, ou no recurso à justiça com as próprias mãos? Mas isso só aumentaria o absurdo! De fato, para a filosofia, essas questões estão entre as mais angustiantes, no que se refere ao sentido do mundo e da vida humana.
Para a religião, não é diferente. Por isso, como diz o papa na encíclica citada, a fé no julgamento divino responde a uma necessidade de justiça e está ligada ao objeto final da esperança humana: naquele tribunal supremo, a justiça será, finalmente, satisfeita. A necessidade individual de uma satisfação da justiça negada nesta vida já é um argumento forte para esperar pelo juízo de Deus; porém ainda mais necessário é poder esperar que a injustiça não tenha a última palavra sobre a História humana.
Dois textos do Evangelho de Cristo mostram bem isso: nas bem-aventuranças, os que sofrem todo tipo de não justiça neste mundo podem estar certos: Deus tomará a sua defesa e lhes fará justiça; eles serão felizes (cf. Mt 5,1-12). Isso não é diferente daquilo que já vinham anunciando os profetas do povo de Israel. E na cena do grande julgamento se põem em evidência, sobretudo, a insensibilidade diante do sofrimento do próximo e a negação da sua dignidade durante esta vida: quem agiu assim não tem a mesma sorte daquele que foi sua vítima (cf. Mt 25, 31-46). Nessa cena, o juiz supremo é o próprio Cristo, que assumiu sobre si a dignidade humana e se identificou com os que dela são privados.
O problema das injustiças clama por solução. Resolveria, em nome delas, protestar contra Deus e rejeitar a sua existência?
Ora, um mundo sem Deus estaria irremediavelmente fechado sobre si mesmo, sem esperança, e teria tudo para ser ainda mais injusto. Só Deus pode criar e assegurar a justiça definitiva. Por isso a ideia do Juízo Final, mais do que aterradora, é carregada de esperança, da derradeira esperança.
Se existe algo de assustador nesse conceito, é porque ele também apela à nossa responsabilidade pessoal: as nossas decisões e ações contam diante de Deus e, boas ou más, têm pesos e valores diferenciados. Quando tomamos consciência das implicações de escolhas livres que fazemos, a nossa liberdade, por vezes, nos assusta!
Ao homem contemporâneo, autônomo e senhor de si, pode soar estranho que ainda se fale em julgamento divino. Não penso assim. Também na era globalizada e da informática o homem experimenta seus limites e morre. Dizer “não creio em Deus, isso não me interessa” não muda as coisas e seria apenas fazer o jogo do avestruz… Deus não deixa de existir só porque nós negamos a sua existência; e a negação de sua existência também não vai eximir ninguém do julgamento divino.
No conceito cristão, contudo, Deus não é um juiz implacável, que aplica de maneira cega uma justiça vindicativa. No julgamento divino, justiça e clemência estão unidas no mesmo olhar de Deus sobre nós: justiça, sim, porque Deus nos leva plenamente a sério e valoriza a nossa liberdade; clemência porque está sempre pronto a perdoar a quem se arrepende. A justiça divina é maior que as nossas fraquezas. Ainda bem!