O Bom Pastor e as migrações
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Um dos símbolos mais significativos da Galileia e arredores, onde Jesus exerceu o seu Ministério Público, é a figura do pastor com suas ovelhas. Figura que engendrou o conceito evangélico e eclesial de Bom Pastor. Emerge uma pergunta imediata: qual a função do pastor? Antes de responder, convém alertar para dois inconvenientes dessa metáfora para os tempos atuais. O primeiro refere-se ao fato de que, numa sociedade crescentemente urbanizada e pósmoderna, a imagem do pastor/rebanho é praticamente desconhecida. O segundo é que o pastor cria e cuida de suas ovelhas com o objetivo de explorar-lhes a lã ou a carne. Sua proteção está condicionada à condição de negociante, o que conota, por parte do rebanho, uma submissão total e estranha ao mundo de hoje. Evidentemente, não é isso o que ocorre com a ideia de Bom Pastor transmitida pela mensagem do Mestre. Feita essa dupla ressalva, passamos à resposta sobre o trabalho do pastor que se traduz em uma tríplice tarefa: garantir o sustento das ovelhas, defendê-las do perigo dos lobros e manter a harmonia entre elas.
O pão nosso de cada dia
Garantir o sustento das ovelhas, em termos concretos, significa encontrar pasto saudável e água para todas indistintamente. Comida e bebida que, transplantadas para a realidade dos seres humanos, equivale a uma base indispensável para uma vida que queira ser mais do que mera sobrevivência. Do ponto de vista da mobilidade humana em particular, essa base implica a reconquista ou defesa do direito a uma nova cidadania ou nova pátria, o que se traduz em direitos fundamentais à dignidade da pessoa humana, onde quer que se encontre. Cidadania e dignidade são sinônimos de condições reais e concretas de vida, tais como trabalho e salário justo, saúde e educação, segurança e habitação, liberdade e participação, e assim por diante.
São inúmeros os imigrantes que hoje, pelas motivações mais diversas, se vêm privados dessas condições mínimas para ocupar “um lugar ao sol”. Boa parte deles sequer dispõe da documentação regular no país em que vive – les sans papiers – o que quer dizer encontrar todas as portas fechadas a uma existência digna e justa. Da mesma forma que a “ovelha perdida” dos relatos evangélicos (Lc 15,3-7), estão condenados não somente a serem abandonados à própria sorte, mas permanecem expostos a todo tipo de exploração, vulneráveis como flores indefesas em meio à tempestade. Nos países ou regiões de destino, habitam em geral os porões mais sórdidos ou as peiriferias mais longínquas das grandes e médias cidades.
Lobos, pastores e cordeiros
Os lobos rondam perigosamente os caminhos por onde passam as ovelhas. Disfarçados de falsos pastores, infiltram-se no vasto e complexo universo das migrações como “mercadores de carne humana”, para usar a expressão profética do “pai e apóstolo dos migrantes”, Dom J. B. Scalabrini, no final do século XIX. Nesse campo minado, não raro as massas humanas em êxodo acabam sendo submetidas a uma dupla exploração. De um lado, tornam-se presa fácil da rede do crime organizado, através dos “gatos, coyotes, atravessadores”, que lhes tomam todo o dinheiro que acaso possuam, chegando ao ponto de, em não poucos casos, cairem nas malhas irreversíveis do tráfico nacional e internacional de seres humanos. Por outro lado, devido à própria fragilidade e vulnerabilidade, sofrem uma espécie de “inclusão perversa” (J. S. Martins) no mercado laboral e sexual. Constituem mão-de-obra fácil e barata para os serviços mais sujos e pesados, mais perigosos e mal remunerados.
Existem, porém, outros lobos, bem mais refinados e influentes, ocultos no labirinto inextrincável do mercado mundial. Lobos sem rosto e sem nome, denominados por siglas, signos ou marcas, conglomerados e fusões de empresas e negócios, com endereço variável e pontos de apoio em todo planeta. Os ventos da economia globalizada, soprando as velas de um liberalismo férreo e sem freios, atraem e ao mesmo tempo rechaçam os migrantes, igualmente sem rosto, sem nome e sem endereço. Fazem deles uma imensa “reserva de trabalho potencial”, convocado-a quando dela necessitam e descartando-a em tempos de vacas magras. Como caniços agitados por esses ventos frios e inescrupulosos, grande quantidade de migrantes são condenados a um vaivém forçado e contínuo, ao sabor de interesses que eles mesmos desconhecem.
É assim que, no mundo da mobilidade humana (e não somente aí) pastores, lobos e ovelhas podem mesclar-se e confundir-se, o que costuma ocorrer por duas razões básicas: primeiro, quando os lobros se disfarçam de pastores ou até de cordeiros, para melhor desfrutar da igenuidade de ambos; segundo, quando os pastores utilizam o próprio cajado não para proteger o rebanho, e sim para golpear qualquer tentativa de liderança, liberdade ou fuga por parte das ovelhas. Se por rebanho entendemos o “povo de Deus”, não é raro ver os pastores atirar sobre ele o peso dos pecados mais hediondos, pecados dos quais as “ovelhas” (ou fiéis), longe de serem os protagonistas, não passam de suas vítimas inocentes ou inocentemente manipuladas.
Liberdade, harmonia e paz
A harmonia e a paz no interior do rebanho não é uma tarefa fácil, especialmente se levarmos em conta o direito inalienável à liberdade. Na realidade da mobilidade humana, as “ovelhas” se originam dos lugares mais diversos. Carregam consigo culturas, tradições e costumes diferentes. Na sociedade moderna ou pósmoderna, marcada pela revolução dos transportes, das comunicações e da informática, rostos, bandeiras, credos e línguas distintas se encontram e se reencontram com uma frequência sem precedentes. Valores e contravalores se cruzam e recruzam, batem e rebatem. Se, de um lado, é verdade que tais diferenças, em lugar de problema, constituem uma riqueza e uma oportunidade de intercâmbio, de outro lado, também é certo que o bem-estar recíproco não pode ser dado por descontado.
O desafio não se reduz a um aprendizado superficial e folclórico sobre o “outro, estrangeiro, diferente”. Vai muito além disso: trata-se de um confronto e diálogo profundos entre visões de mundo distintas e às vezes até contraditórias. Encontro que exige escuta, compreensão, abertura, reconhecimento da alteridade. Só assim a harmonia representa não um simples verniz exterior sobre tensões e conflitos latentes, e sim um espaço para um processo de depuração e purificação de ambas as partes. Não a paz de cemitério, mas o entrelaçamento de ideias. O encontro não se limita a uma justaposição ou convivência pacífica de grupos, povos, raças ou etnias, como água e azeite, mas é capaz de superar a tolerância e dar lugar ao respeito. Vale dizer, a verdadeira harmonia abre um processo de profunda aprendizagem e mútuo enriquecimento. Entendimento entre visões heterogêneas, plurais, multiéticas – bem diverso de uniformidade padronizada e homogênea. No intercâmbio, os valores se fundem e se multiplicam (e não apaenas se somam), ampliando os horizontes do patrimônio cultural da humanidade.
Panamá, 15 de maio de 2014