O combustível da solidariedade
Domingos Zamagna
O ano de 2010 marca o centenário da formação em medicina do Dr. Albert Schweitzer (1875-1965), Prêmio Nobel da Paz em 1952.
A figura luminosa desse grande homem, sobretudo quando estamos sob o efeito dos relatos e das imagens impactantes de Angra dos Reis, Baixada fluminense, São Luiz do Paraitinga, enchentes em São Paulo e noutras cidades e, mais que tudo, da catástrofe do Haiti, nos faz pensar na importância de uma cultura da solidariedade. Alguns estudiosos escolheram o vocábulo “solidariedade” como o mais adequado para se traduzir o que o Novo Testamento chama de “ágape”.
Gostaria de começar citando dois exemplos que acompanhei de perto.
Tive uma aluna que faz parte da Ong Médicos sem Fronteiras. Há vários anos ela foi designada para dar assistência a terremotados do Irã. Ela sugeriu que um dos poucos prédios que não foram destruídos na região em que atuava – a mesquita – fosse transformada em enfermaria de emergência. Por ser uma mulher estrangeira (francesa) sugerindo um absurdo desses, execrada pelos clérigos, foi obrigada a se afastar da área, processada, e só não foi condenada porque o governo da França lhe deu proteção eficaz, abrigando-a num navio de guerra no Golfo pérsico, possibilitando seu retorno a São Paulo. Por duas vezes ela precisou interromper o curso no Brasil e comparecer diante de juízes em Teerã para responder por seu “crime”. Certamente também no Irã há muitas pessoas tolerantes, mas sabemos que elas vivem quase escondidas sob o regime dos aiatolás. A intolerância de parte da clericatura islâmica predomina sobre toda a nação.
Em 2004, por ocasião do tsunami na Ásia, a Ong mandou a mesma médica para o leste do Sri Lanka, trabalhando numa região bem pobre que, além de atingida pelas gigantescas ondas do maremoto, era também conflituosa do ponto de vista político. Tardando o apoio logístico do governo cingalês, os guerrilheiros separatistas Tigres Tâmeis lhe obtiveram instrumentos para realizar cirurgias e acesso à internet. Enviou relatos pungentes que alguns jornais publicaram durante semanas. Os monges budistas foram espontaneamente os primeiros a oferecer seus pagodes para serem transformados em enfermarias. Suas túnicas, devidamente esterilizadas na fervura a lenha, serviram de campos cirúrgicos, possibilitando a salvação de muita gente. Sem maniqueísmos, outra cultura claramente produz outras práticas.
Na semana passada, chego em casa de noite e encontro um envelope vindo de Gana. Correspondência de outra ex-aluna, religiosa, missionária na costa atlântica da África. Onde ela foi trabalhar? Numa cidadezinha em que o Dr. Schweitzer construiu um hospital. Durante a graduação, falei várias vezes para os alunos da notável figura deste humanista que sempre me impressionou. Médico, cientista famoso; músico, exímio organeiro e organista, um dos maiores intérpretes de Bach; escritor, refinado filósofo; pastor luterano, competente teólogo e exegeta; educador, foi o inventor de uma linguagem adequada para se dirigir aos africanos das colônias francesas que se debatiam na dura vida das selvas. Este eminente alsaciano (a Alsácia de então pertencia ao Império alemão) deixou o conforto da Universidade de Strasbourg para trabalhar com os hansenianos na África.
Nem sempre a bondade é recompensada. Com o início da I Grande Guerra a família Schweitzer foi levada para a França como prisioneiros, passando anos confinados em campos de concentração. Nessa época Schweitzer escreve sobre a decadência das civilizações. De fato, até hoje não se descobriu uma vacina contra a decadência. Mas talvez o solidarismo seja o antídoto mais eficiente contra essa moléstia que afeta todas as latitudes e longitudes do planeta. Com o fim da guerra, ante um mundo que se desmoronava, não perdeu a esperança: “Começaremos novamente. Devemos dirigir o nosso olhar para a humanidade”.
A fama não lhe subiu à cabeça, não o afastou de seus valores. O trabalho do Dr. Schweitzer com os mais excluídos dentre os doentes, num modesto hospital na cidadezinha de Lambarené lhe valeu, com justeza, o Prêmio Nobel da Paz.
Todos nós sabemos que a destruição de Porto Príncipe é mesmo dolorosa. Mas ao mesmo tempo as nações, contagiando-se umas às outras pelo solidarismo, redescobrem que sob nosso olhar existe um povo empobrecido pelo colonialismo, pela violência política de uma dinastia familiar, pelo esquecimento histórico.
Esperemos que os fatos, por mais tristes que sejam, nos ensinem a sabedoria de nos afastar tanto do individualismo quanto do coletivismo, para que o Haiti e outras populações vítimas das catástrofes naturais e sociais possam se construir sobre a rocha sólida do trabalho disciplinado, da prevenção eficaz, da preparação de um futuro de prosperidade, da conscientização pela educação, mas também pelo mais robusto liame que pode unir os seres humanos, a solidariedade.