O corpo no corpo no corpo
Frei Betto
Na festa de Corpus Christi convém lembrar que há um corpo dentro de um corpo dentro de um corpo. De uma explosão inicial, chamada Big Bang, o Universo surgiu há 13,7 bilhões de anos e continua a se expandir em velocidade constante. Há 10 bilhões de anos uma estrela chamada supernova deu origem ao nosso sistema solar. Um pedaço dela, sem calor suficiente para ser considerado estrela, resfriou, e hoje é conhecido como planeta Terra, embora nele haja mais água que terra.
Sutis combinações ambientais se somaram para permitir, na Terra, o surgimento da vida, há 3,5 bilhões de anos. Em seu processo evolutivo, o pai-universo, que gerou a ninhada de filhos conhecida como sistema solar, e no qual se destaca a filha Terra, viu irromper, no seio de nosso planeta, o fenômeno vida que, em suas variadas manifestações, gerou um ser dotado de inteligência e sede de transcendência conhecido como humano.
Milênios após o aparecimento do homem e da mulher – olhos e consciência do Cosmo – aparece no Oriente Médio um pregador ambulante que, herdeiro da tradição religiosa hebraica, nos revela que Deus é amor e habita os nossos corpos, somos templos divinos, dotados de irredutível sacralidade.
Muitos não prestaram atenção nas palavras de Jesus. Continuaram a procurar a semente fora da árvore. Não perceberam que Deus se incorporou em nosso corpo, que vive se alimenta do corpo da Terra, que rodopia em torno do corpo do sistema solar, situado na extremidade do corpo de uma galáxia conhecida pela belo nome de Via Láctea, uma entre bilhões de colares estelares expandindo-se pelo incomensurável corpo do Universo.
Não perceber que somos todos o corpo místico de Cristo fez a fé equivocada exilar Deus para fora de sua Criação, confundindo transcendência com deslocamento espacial. Essa visão distorcida favorece a perplexidade causada pela notícia de que um cientista estadunidense criou vida artificial no seio de uma bactéria. Como se Deus fosse o Grande Relojoeiro definido por Isaac Newton. Ora, o que importa o relógio se ele não mostra as horas?
Somos dotados de inteligência para desvendar todos os mistérios da natureza – do Big Bang, testado no superacelerador construído entre as fronteiras da Suíça e da França, ao DNA computadorizado da bactéria de Craig Venter. A confusão em que se atola a fé reside no conceito pagão, grego, de Deus. Mais o valorizamos como poderoso do que amoroso, mais criador que redentor, mais origem de todas as coisas do que fim para o qual todas as coisas, sobretudo nossas vidas, devem convergir.
Os antigos acreditavam que só Deus poderia mudar a noite em dia; até que se inventou a luz elétrica. Só Deus era onipresente; até que se inventou a comunicação eletrônica. Só Deus poderia provocar o apocalipse; até que se inventaram as ogivas nucleares.
Deixemos de lado a concepção mecanicista de Deus. Ainda que seja criada vida humana em laboratório a questão permanece a mesma que perturbou a mente de Alfred Nobel quando inventou a dinamite para quebrar pedreiras e viu seu artefato ser usado como arma de guerra: qual o grau de egoísmo ou amor com que lidamos com os bens da Terra e os frutos do trabalho humano?
Somos como a velha que, no mercado indiano, abaixou a cabeça para procurar algo no chão repleto de lixo. Outros passaram a imitá-la. Até que um jovem indagou: “O que a senhora procura?” “Uma agulha.” “Uma agulha!” “Ora, aqui no mercado há milhões de agulhas à venda e não custam nada.”
Muitos já desistiam da busca quando ela acrescentou: “Uma agulha de ouro.” Então voltaram a abaixar a cabeça e procurar o precioso objeto. O rapaz fez outra pergunta: “A senhora não tem mais ou menos ideia onde a perdeu?” “Tenho sim”, disse ela, “perdi-a em casa.” “Em casa?” retrucou o rapaz. “E nos faz de bobos procurando-a aqui no mercado?”
A velha disse a todos que a fitavam: “Sim, procuro aqui o que perdi dentro de casa, assim como todos vocês procuram fora a felicidade e o amor que está dentro de vocês.”