O girassol e a 5ª Semana Social Brasileira
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
As Semanas Sociais Brasileiras (SSBs), não como eventos localizados no tempo e no espaço, mas como longos processos de reflexão e ação, têm utilizado o símbolo do girassol. Não poderia ser diferente nesta 5ª SSB que tem como tema a “Participação da sociedade no processo de democratização do Estado Brasileiro”. Trata-se de uma trajetória reflexiva que está em curso e que, em termos mais populares, procura abrir veredas a partir do Estado que temos para o Estado que queremos. Em uma palavra, como podemos construir juntos os canais, mecanismos e instrumentos dessa participação popular?
Um olhar para trás
Convém fazer uma rápida retrospectiva pelas Semanas Sociais Brasileiras já realizadas e suas respectivas temáticas: em novembro de 1981, centenário de celebração da Rerum Novarum, carta encíclica do Papa Leão XIII, a 1ª SSB centrou os debates na questão do trabalho e as novas tecnologias. Já a 2ª SSB ampliou o tempo de duração, entre 1993 e 1994, tendo como preocupação de fundo o Brasil que queremos, aprofundando o tema “Brasil, alternativas e protagonistas”. No decorrer da preparação ao grande Jubileu do nascimento de Jesus Cristo, a 3ª SSB dedicou três anos, de 1997 a 1999, ao estudo detalhado do endividamento brasileiro, em particular a Dívida Externa. Em 2005, encerrava-se a 4ª SSB, com o tema “Articulação das forças sociais para a construção do Brasil que nós queremos”, familiarmente, Mutirão por um novo Brasil.
No decurso de todas as Semanas Sociais participaram numerosos atores da sociedade civil: movimentos e pastorais sociais, entidades, associações, organizações não governamentais, campanhas, mobilizações, consulta popular… Numerosos frutos nasceram e/ou se fortaleceram com a realização das Semanas Sociais. Entre tantos, convém destacar a Campanha Jubileu Sul, na auditoria e no combate ao endividamento brasileiro; o Grito dos Excluídos, que desde 1995 vem lutando pela “vida em primeiro lugar”, e o Grito Continental que levou a mobilização a outros países; os dois Plebiscitos Populares, respectivamente sobre a Dívida Externa e sobre a implantação da ALCA, que levaram milhões de pessoas às urnas; a Assembleia Popular, reunindo em Brasília milhares de pessoas… E assim por diante.
Um olhar ao redor
Com a 5ª SSB, trata-se de colocar em pauta o Estado Brasileiro. Histórica e estruturalmente, é um Estado que carrega uma série de nós, de entraves e de vícios difíceis de explicar e mais ainda de substituir por instituições sadias e saudáveis. Expressões como oligarquias e coronelismo, curral eleitoral e bancada ruralista, patrimonialismo e apadrinhamento, corrupção com enriquecimento ilícito e compra e venda de apoio político, tráfico de influência e balcão de negócios, demagogia, populismo, centralismo e personalismo, para não falar de outros “ismos”. Tudo isso desenha um panorama nada idôneo do que tem sido, e segue sendo, a prática política no país em não poucas instâncias do cenário político. O tecido sociopolítico brasileiro, salvo raras e boas exceções, está carcomido por vírus difíceis de extirpar. Em maior ou menor grau, voltam à tona por ocasião dos pleitos e das disputas eleitorais, com ataques e acusações de parte a parte. Hoje nenhum partido escapa a semelhante clima.
Com freqüência preocupante, a rex publica escancara as portas para o oportunismo de toda sorte. O Estado é visto como uma gigantesca “vaca leiteira”, com leite abundante para quem conhece os meandros e corredores dos órgãos federais, estaduais ou municipais. Mais do que a inteligência e responsabilidade na gestão da coisa pública, acaba prevalecendo a “esperteza” de quem sabe se aproveitar do cargo, da “boquinha”, da ocasião propícia para fazer seu “pé de meia”. O político na acepção mais popular do termo prima não pela ética, e sim pela maneira como “soube aproveitar a chance”. Daí os políticos de carreira que só têm olhos e ouvidos para os próprios negócios. Daí também a idéia difundida pelas ruas de que há a Política (com “P” maiúsculo) e a política (com “p” minúsculo). Mesclam-se e se confundem empreendimentos públicos e privados, uns dando suporte aos outros, numa espiral dialética e dinâmica que só faz crescer o patrimônio das grandes famílias, ao lado do abandono de populações inteiras. Cargo político e enriquecimento tornam-se simultaneamente causa e efeito de um processo promíscuo em sua história, em sua estrutura e em suas bases. Mas retornemos ao símbolo clássico das Semanas Sociais.
Um olhar para frente: Imagem do girassol
A meta da 5ª SSB é contribuir para a reversão desse quadro. E a imagem do girassol, a exemplo dos anteriores processos de debate, pode nos indicar ao menos quatro lições. Primeiramente, como toda planta, antes de crescer para cima, o girassol cresce para baixo. Antes de buscar o ar livre, o céu azul e a luz do sol, ele mergulha as raízes no solo úmido e escuro. Matura em silêncio no ventre fecundo da terra. Por isso, quando levanta a cabeça, tem os pés firmes no chão, não se deixando levar pelo vento de eventuais modismos. Conhece os desafios sombrios da história, como também a possibilidade de dias ensolarados. Na medida em que busca o Estado que queremos, a discussão da 5ª SSB deve estudar a fundo as mazelas do Estado atual, penetrar em seus bastidores às vezes putrefatos, dar-se conta dos tumores que grassam em seu tecido, alguns em fase de metástase adiantada. E deve conhecer, paralelamente, as vítimas de uma prática política viciada, cristalizada e necrosada. Crescer para baixo é ter coragem de mergulhar o bisturi na ferida para buscar-lhe remédio. Antes de pensar numa planta vigorosa que podemos chamar de “projeto popular para o Brasil” é necessário fortalecer suas raízes no chão da cultura e população brasileira.
Em segundo lugar, como toda flor, a passagem do girassol pela existência é transitória e efêmera. Essa provisoriedade lhe confere brilho intenso e beleza única. Sabendo-se hóspede pela face da terra, doa-se incondicionalmente enquanto está vivo e vicejante. Como diz o poeta Fernando Pessoa: “Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive”. A construção de novas vias para o exercício da política exige de cada protagonista doação integral. O caminho da política, em especial o mandato, não pode converter-se em empreendimento privado com vistas a maiores ganhos. O bem comum prevalece sobre os interesses pessoais, familiares, grupais, partidários, corporativistas. O conceito de “bem comum”, tão antigo quanto a história da democracia, só será possível se e quando firmemente ancorado em princípios éticos. O tema da ética na política tem gerado inúmeras discussões e escritos, bibliotecas inteiras, mas em nossas terras pouco avançou em termos de prática real e eficaz.
Numa terceira lição, diferentemente de outros vegetais, o girassol reafirma a cada dia seu próprio nome. Acompanha a trajetória do astro rei, girando de acordo com sua órbita, permanecendo-lhe fiel do nascente ao poente. Nutre-se dessa fonte de luz, alimento para toda espécie de vida. Até mesmo quando o sol se oculta, o girassol curva-se sob o solo, como a buscá-lo nas trevas. É a intuição de que, apesar da escuridão, seu brilho infalível há de trazer a aurora de outro amanhecer. Traz em sua constituição a idéia de que um novo dia sempre segue o anterior. Vale o mesmo para a construção participativa de um projeto popular, do Estado que queremos. Não importa a densidade das trevas em que vivemos, não importa a ilusão das democracias de fachada nos países ocidentais. Com a luz e o calor do sol, será possível refazer os caminhos da política e de uma verdadeira democracia.
Por fim, mas não em último lugar, o girassol, embora de existência breve, prolonga-se eternamente na semente que deixa cair no chão ou que os pássaros carregam para terras mais férteis. A exemplo do lavrador, intui que a semeadura é seguida de um tempo de maturação. O relógio da mãe terra e de Deus não coincide com o relógio dos homens e da história. Trabalhar em termos políticos não é fazer algo para um retorno imediato, com benefício para esta ou aquela agremiação, e sim pensar um projeto que esteja acima do próprio mandato ou corporação. Não se trata de extrair ou manter benesses e privilégios do cargo, mas de levar em conta as necessidades básicas de toda a população, priorizando evidentemente os setores que, por algum motivo, tenham sua vida mais ameaçada.
Aqui se conjugam duas lições: a do girassol e a do jardineiro. Este prepara o terreno, lança a semente, e repousa tranqüilo, pois tem certeza que a natureza há de fazer o resto, desde que ele não se descuide do cultivo da planta. Igual serenidade é indispensável ao agente de pastoral ou ao cidadão em sua ação social. Quantas vezes a ansiedade o deixa impaciente! O trabalhador da terra ensina que não se pode fazer a parte nossa e a parte do Espírito de Deus. Quando sobrecarregamos os ombros com ambas as tarefas, facilmente tombamos sob um fardo pesado. Importa fazer nossa parte, sem dúvida, e da melhor forma possível. Mas importa igualmente confiar na ação de Deus. A palavra final do jardineiro, com o cultivo do girassol, tem a ver com a fé na presença de Deus tecendo os caminhos da história.
A 5ª SSB nos convida a essa tarefa de tecer novos caminhos. É uma tentativa de fazer com que os espectadores deixem a arquibancada, entrem em campo e participem do jogo. O desafio é passar de um patriotismo passivo a uma participação ativa nos debates sobre o destino do país. Nesse desafio conjunto, como deve ser a nova cara do Estado? Já conhecemos a democracia representativa e sabemos de suas limitações. Como avançar para um tipo de democracia mais direta, inclusiva e participativa? Essas e outras questões estão lançadas. Não há para elas respostas fáceis, imediatas. Tampouco existem receitas prontas. A via a seguir é estreita, tortuosa e longa. Requer espaço para todos, respeito à pluralidade de opiniões, abertura dialógica, mútua compreensão… O mutirão envolve a todos sem exceção.