O mundo como pátria
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
O processo de globalização, que se acentua a partir dos anos de 1970 e se estende pelas primeiras décadas do século XXI, vem modificando gradualmente a noção de pátria. “Minha pátria é a língua portuguesa”, dizia o poeta Fernando Pessoa. Dom J. B. Scalabrini, bispo de Piacenza, Itália, por sua vez, sustentava, no final do século XIX, que “para os migrantes a pátria é a terra que lhes dá o pão”. O mesmo bispo, considerado “pai e apóstolo dos migrantes, acrescentava que o fenômeno migratório “funde e aperfeiçoa as civilizações, amplia o conceito de pátria para além dos confins materiais, tornando o mundo a pátria do homem”.
A emergência histórica dos estados nacionais amadurece junto com a modernidade, e consolida-se com a Declaração da Independência dos Estados Unidos (1776) e com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), dois documentos que nascem, respectivamente, com a guerra da independência, nas terras novas de além-mar, e com a Reolução Francesa, no velho continente. Chegava-se, assim, ao ápice de um longo percurso, onde a subjetividade e a individualidade, que cresceram gradualmente desde o renascimento, o humanismo e o iluminismo, desembocavam na consciência de uma cidadania autônoma frente ao Estado
O conceito de pátria, nação e cidadania, particularmente na Europa, nascia estreitamente vinculado a uma certa homogeneidade não só física e territorial, mas também linguística, históricae cultural. De fato, se tomamos a França e a Inglaterra como dois exemplos clássicos, língua, território, história e cultura unificam a população numa certa origem comum. Semelhante origem homogênea vinha reforçada pelo cimento religioso, católico num caso e protestante no outro. Resulta que o conjunto da população se reportava a uma trajetória que, apesar de não poucas tensões, guerras e adversidades, constituia uma referência nacional.
A forte emigração europeia em direção às Américas, como também à Austrália e Nova Zelândia, no decorrer do século XIX e primeiras décadas do século XX – os historiadores estimam em mais de 60 milhões o número de pessoas deixaram a Itália, Alemanha, Grã Bretanha, Polônia, Irlanda, Espanha, Portugal, etc. – a bem dizer, inaugura uma nova concepção de pátria. Nesta, “a terra que dá o pão” toma o lugar da terra natal como referência de solo pátrio. Nos países de destino os imigrantes se mesclam numa população que, longe de contar com um passado comum, constitui-se a partir de uma origem fortemente heterogênea, quer em termos territoriais e históricos, quer de um ponto de vista línguístico e cultural.
Tal componente heterogênea da população, entretanto, acentua-se nos dias atuais com a maior intensidade, complexidade e diversidade do fenômeno da mobilidade humana. Esta, de fato, corta raízes, rompe fronteiras e, em perspetiva geográfica, desloca inteiras massas humanas. Ao mesmo tempo, porém, as desterritorializa, dissociando-as de um determinado lugar físico. Não é fácil expor as raízes ao sol, digamos assim, mas, uma vez desenraízadas, as pessoas ou famílias se encontram mais predispostas a novos deslocamentos, bem como a “optar” por uma nova pátria, desde que garantam ali uma sobrevivência mais ou menos adequada. Isso não obstante a saudade das origens e o sonho do retorno. Saudade e sonho que, de resto, aparecem como uma das características mais recorrentes nas “histórias de migrantes”.
De um ponto de vista antropológico e sociocultural, a comunidade religiosa figura muitas vezes como um lugar privilegiado para a retomada da noção de pátria. Ali, no espaço da Igreja, o migrante reencontra seus conterrâneos, às vezes consegue reunir a família dispersa, refaz laços antigos e costura novos relacionamentos. Esse espaço inicial é condição básica para uma integração menos traumática e menos demorada. Idioma, expressões culturais do país de origem, devoções populares, festas religiosas ou patrióticas e visão de mundo de alguma forma unem pessoas e famílias que a migração havia temporariamente separado. Se, num primeiro momento, o imigrante conta predominantemente com o suporte dos parentes, amigos e familiares mais próximos para “conhecer e entrar” na nova realidade, num segundo momento a comunidade religiosa pode ser-lhe de grande ajuda, tanto para o encontro/reencontro quanto para regularizar a situação .
Em geral a comunidade vai de encontro não somente às suas necessidades culturais e/ou religiosas, mas também ajuda-o no árduo e constrangedor processo de documentação, na assistência jurídica e às vezes imediata, como também na busca de trabalho, habitação, escola para os filhos, e outras incunbências. Não sem razão alguns imigrantes concluem que “o coração de Jesus” – referindo-se aos espaços, encontros, celebrações comunitárias e à boa aceitação – “é a pátria dos que estão longe de sua terra e de sua família”. Os recém-chegados sabem da comunidade através de uma rede capilar de informações, a qual, por outro lado presta grande serviço à coesão e à defesa do grupo, especialmente quando se desencadeiam ondas de discriminação, preconceito, xenofobia ou até perseguição aberta.
Não são poucos os casos em que pessoas, famílias ou grupos inteiros encontraram na respectiva Igreja um trampolim para a integração no país de destino. Tropeçamos, deste modo, com um aparente paradoxo. Por uma parte, os imigrantes utilizam a religião para reencontrar-se e reconstituir-se como povo, recordar seus costumes originais, degustar comidas típicas, celebrar as próprias datas festivas e sentir-se “em casa”, enquanto população etnicamente homogênea, mas estrangeira. De outra parte, utilizam a Igreja também para inserir-se na sociedade heterogênea que os recebe e onde terão de viver. Há aqui, inegavelmente, um duplo instinto de sobrevivência: devem garantir-se quanto às necessidades básicas, proteger-se frente a uma eventual hostilidade (que não raro se torna real, rancorosa e racista) e, ao mesmo tempo, mantêm-se atentos a todos os meios que os levem a integrar-se de forma mais rápida e positiva, tanto no mercado de trabalho quanto no convívio com outros gruos étnicos.
De forma consciente ou inconsciente, implícita ou explícita, o conceito de pátria torna-se um instrumento duplo, simultaneamente de coesão e integração. Duplo e não despido de certa ambiguidade. Com referêncoa ao país de origem e ao passado comum, a noção de pátria serve como união, defesa e reforço dos laços primários de nascimento, parentesco, língua, história e cultura; mas na medida em que, de forma mais ou menos definitiva, passam a habitar o país de destino, e com respeito ao futuro, a mesma concepção de pátria adquire um significado diferente. Representa uma forma de reivindicar os direitos básicos de um cidadão em toda a sua dignidade. Pátria então torna-se direito à cidadania. E esta se abre ao leque mais amplo de toda e qualquer nação onde o migrante chegue e se instale. “We are America” – lia-se numa faixa exibida por uma multidão de migrantes hispano-americanos em protesto pelas ruas de Los Angeles.
Roma, Itália, 15 de março de 2014