O Papa Francisco e as mudanças na Igreja

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs

Nem precisaria lembrar que o Papa Francisco (Jorge Mario Bergoglio) não é a Igreja. Mas, se de um lado isso é verdade, não é menos certo que sua figura representa a voz mais autorizada da mesma. Em suas mãos está o leme desta frágil embarcação, em seu poder a possibilidade de uma guinada, por menor que seja, quanto ao rumo da barca de Pedro. Esta, ao longo dos tempos, sempre navegou em águas mais ou menos agitadas, como o são as ondas das mudanças históricas. Diga-se de passagem que tudo o que dilacera o tecido socioeconômico e político-cultural no seu conjunto – medos e angústias, dúvidas e perguntas, crises e turbulências, contradições e assimetrias – dilacera igualmente a Igreja e seus fiéis. Dita embarcação não goza do privilégio de imunidade diante dos mares bravios da trajetória humana. Um voo de pássaro sobre o pontificado de Francisco, numa leitura de caráter meramente pastoral, revela indícios de que essa nave bi-milenar pode, sim, sofrer mudanças de rota. E que as mudanças podem, sim, ser positivas.

1. A novidade da linguagem

Tornaram-se emblemáticas as expressões do Papa Francisco. Não tanto pela transmissão de novos conteúdos, mas pela novidade da linguagem. Sobre os discursos de natureza acadêmica, racional e conceitual, prevalece o colóquio direto, simples, facilmente inteligível. Em lugar do recheio rebuscado de citações dos Santos Padres, da Escolástica ou dos documentos de seus predecessores, por exemplo, adquire maior importãncia o apelo ao modo de falar cotidiano, utilizado pelas pessoas em casa e nas ruas, nos pontos de ônibus e no metrô, nas feiras e supermercados, nos açougues e padarias… Não se trata, evidentemente, de contrapor um tratado bíblico-teológico a um diálogo informal entre amigos. Ambas as linguagens têm sua legitimidade e seu lugar. O que o Papa Francisco tem feito é dirigir-se às pessoas com as palavras que lhes são mais familiaes e compreensíveis. Uma prática presencial, espontânea e amiga substitui a pretensão da cátedra, da doutrinação ou do púlpito.

Daí sua insistência em repetir, em cada audiência, as saudações costumeiras: buon giorno (bom dia), buon pomeriggio (boa tarde), buon pranzo (bom almoço), e assim por diante.Além disso, não só utiliza esse tipo de comunicação direta e informal, mas enfatiza a necessidade de algumas palavras que jamis devem ser esquecidas: permesso (licença), scusate (descupa) e grazie (obrigado). O valor não está na expressão em si, mas na forma de relacionamento com o público e com cada pessoa em particular. Mais ainda: a descoberta de que, normalmente, as pessoas não procuram respostas a perguntas complicadas, mas o reconhecimento de alguém, ou ainda, em geral as pessoas não buscam soluções a seus problemas complexos, mas um ouvido que saiba compreendê-las. Num mundo marcadamente urbano, cada um se torna um átomo cujas partículas (paixões, desejos, interesses, esforços) giram em torno de si mesmo. Todos falam e ninguém se dispõe a escutar. O Pontífice, como o seu modo de comunicar-se, resgata a verdade mais óbvia e simples: as pessoas buscam antes de tudo encontrar-se, fugir ao abismo insuportável da solidão. Nisso está a importância do olhar, do toque, do gesto, do abraço, da atenção. A tendência de doutrinar através de teorias, dogmas ou lições de moral dá lugar à simples presença, à mão estendida, ao telefonema inesperado, ao contato vivo com as crianças, os idosos, os doentes.

Valeria aqui uma comparação com a prática de Jesus, o qual “percorria todas as cidades e aldeias”, ao encontro das “multidões cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor”. (Mt 9,35-38). A linguagem de Jesus é de uma simplicidade sem precedentes. Suas parábolas e palavras nascem do cotidiano do contexto em que vivia: pescador e lavrador, rede e peixe, fermento e sal, luz e semente, pastor e ovelha, vinha e moeda… Mais do que textos cuidadosamente elaborados ou discursos envernizados de moralidade, o povo valoriza a imagem, a presença viva e direta. Esconde-se aqui uma sabedoria nem sempre explícita: a verdadeira Igreja – Mater et Magistra – é aquela que, sem esquecer o segundo termo da expressão de João XXIII, em sua encíclica de 1961, dá preferência ao primeiro. A mãe, ou o Bom Pastor do Evangelho (Jo 10,1-21), ama a todos sem distinção nem discriminação, mas tem um carinho especial pela “ovelha perdida” (Lc 15,1-7), aquela que tem sua vida mais ameaçada. Por isso é que, na entrevista sobre temas como o homossexualismo, por exemplo, o Papa não exita em afirmar que a Igreja é aquela que, em primeiro lugar, deve “curar as feridas”. E mais, “se o indivíduo busca Deus na sinceridade de seu coração, quem sou eu para julgar”, conclui.

2. Autoridade e serviço

O Papa Francisco vem desmestificando sistematicamente o conceito destorsido de “autoridade petrina”. Esta, por razões históricas bem complexas e diversificadas, havia se distanciado das origens da Igreja primitiva. O sucessor de Pedro, com o passar dos séculos, adquirira um “trono” hierarquicamente acima de qualquer cristão. Deste tempos pretéritos, instalara-se o principado dentro da Igreja! Daí à pompa, ao luxo, à riqueza, à aliança com o poder temporal, à disnastia cardinalícia, à solenidade exteriorizada numa liturgia rígida e ritualista e ao sistema de corte no interior do próprio Vaticano – a distância era mínima. Um séquito de servidores, vestidos conforme rigorosa hierarquia, punha-se à disposição do vigário de Cristo, o que se manifestava frontalmente contrário ao gesto da última ceia (Jo 13,1-17). Em muitos casos, no decorrer da história da Igreja, a autoridade converteu-se em autoritarismo. Pior ainda, em circunstâncias bem específicas e notórias (inquisição, cruzadas, confronto com a ciência, etc.), o poder espiritual superou até mesmo o poder temporal em domínio, intolerância, perseguição, tortura, condenação e morte. Nem autoridade nem poder, mas pura e simplesmente totalitarismo, fundamentalismo religioso.

O novo Pontífice faz questão de “derreter” essa imagem de uma autoridade transplantada do poder temporal para a prática da organização dentro da Igreja. O verbo derreter constitui uma metáfora extraída do universo do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, segundo o qual a “modernidade líquida” elimina não poucas instituições sólidas que compunham o alicerce dos temos modernos. Prevalecem na chamada pósmodernidade as relações líquidas, flexíveis, versáteis, virtuais e até mesmo descartáveis. Os laços imediatos e provisórios substituem as relações sólidas. O experimento e a novidade tomam o lugar dos valores tradicionais. O Papa Francisco derrete a autoridade pontifícia quando descarta, desde o primeiro dia de seu pntificado, determinados aparatos principescos ou cortesãos (exemplos clássicos: os sapatos vermelhos, a cruz peitoral, o anel de ouro…) ). Fá-lo igualmente quando desce os degraus do trono (reais ou imaginários), circula pela praça e põe-se a falar com o povo ali concenrado para encontrá-lo. Conhece bem a necessidade de “perder tempo” com cada pessoa, de individualizar o problema de cada uma no meio da multidão anônima, de oferecer-lhe um sorriso, a mão aberta, uma palavra de conforto. A autoridade transforma-se em serviço àqueles que sofrem e buscam socorro. E aqui emerge um aparente paradoxo: essas relações simples, diretas, personalizadas e aparentemente “líquidas”, na verdade, conduzem à solidez inesperada do diálogo eu-tu, da presença gratuita, da capacidade de sair de si mesmo para ir ao encontro do outro. Reside nesta relação de amizade e amor o valor mais sólido que a humanidade é capaz de efificar.

Uma vez mais, torna-se evidente o parelelo com as atitudes de Jesus. Sua caravana jamais atropela um corpo enfermo, um coração angustiado, uma alma atormentada. Sempre se detém quando alguém sofre, chora e grita por socorro. Nenhuma lágrima e nenhuma dor lhe é indiferente. Parece caminhar ao encontro do sofrimento. Sobre o tema da autoridade, Jesus confronta a tirania dos “chefes das nações” com a necessidade de “tornar-se servo” por parte de seus discípulos. E conclui: “O Filho do Homem não veio para ser servido; Ele veio para servir” (Mt 20,25-28). Por isso, comparado aos saduceus e fariseus, pretensos doutores da lei, é Jesus quem de fato “fala como quem tem autoridade” (Mc 1,22).

3. Imagem e mídia

A exemplo de João Paulo II, o atual Papa vem se revelando surpreendentemente um homem de mídia. Mas, diferentemente de seu antecessor, a imagem que o Papa Francisco passa para os meios de comunicação é menos a de um chefe de Estado do que a de um pastor. A grandiosidade exterior se reduz à simplicidade de quem prefere entrar pela porta dos fundos. Prevalecem não tanto os gestos espetaculares, os documentos filosófica e teologicamente rebuscados, os discursos imponentes e as decisões peremptórias, mas, ao contrário, o cumprimento genuíno e cotidiano de quem, em cada pessoa, conhecida ou desconhecida, encontra um familiar ou um amigo: bom dia, como vai? Por isso os peregrinos em Roma o buscam em número cada vez maior. Nos dias de audiência e de missa (quarta-feira e domingo), a Praça São Pedro se faz sempre menor para a quantidade gente que vem comparecendo. As pessoas o querem encontrar, ver, ouvir, tocar. Procuram alguém que lhes esteja ao mesmo nível e que lhes saiba dirigir a palavra de igual para igual. Ele parece como um de nós!

As multidões o procuram e a mídia segue as multidões. Daí a razão porque o Papa Francisco é notícia com uma frequência inesperada. Sua presença nos jornais escritos e televisivos mantém-se regular e crescente. Além disso, a espontaneidade e simplicidade de seus gestos e palavras carregam um valor oculto de verdade. Esta, como sabemos, é sempre direta, pura, iluminada e transparente. A verdade e a bondade, o belo e o bem possuem o dom da simplicidade, por mais que sua apresentação possa parecer complexa. É o caminho tortuoso da argumentação que costuma complicar as coisas. No fundo, quem domina profundamente determinado assunto consegue simplificá-lo, reduzindo-o ao seu núcleo central. Vai direto ao coração que pulsa e move a seiva da vida. E inversamente, quem não o domina segue por labirintos obscuros, porque, entre outros fatores, precisa convecer a si mesmo antes de convencer os demais. A alegria sincera do Papa Francisco revela uma verdade a que todos anseiam, mesmo sem o saber: um coração feliz e em contato com Jesus Cristo, uma fé madura e profunda, porque radicada não em grandes feitos de heroísmo e grandiosidade, mas no doar-se concreto do dia-a-dia.

Também neste item, a imagem do Papa Francisco e a imagem de Jesus se cruzam, embora em graus infinitamente diferentes. Porder-se-ia dizer de ambos o que escreve Olivier Clément: “os pobres em espírito são aqueles que deixaram de ver em si mesmos o centro do mundo (…) Despojam-se de tudo e, no limite, também de si mesmos. E a cada momento recebem a própria existência como uma graça das mãos de Deus” (citado por Enzo Bianchi, In Gesù e le beatitudini, Ed. Rizzoli, 2010). Já o pobre de Assis, de quem o Pontífice escolheu o nome, sublinhava que há maior alegria em dar que em receber. Pobre é aquele que só tem a Deus a quem recorer. Esta redescoberta do amor gratuito, numa sociedade fortemente marcada pelo individualismo, pelo narcisismo e pelo hedonismo, contagia até mesmo o espaço da grande mídia, ainda que esta se guie naturalmente pelos critérios do mundo empresarial e do mercado global.

4. Comportamento e desafio

O comportamento do Papa Francisco tem sido contemporaneamente popular e singular. Singular quando pensamos numa autoridade com o peso histórico da “cátedra petrina”. Neste sentido, rompe com uma série de receitas já prontas, com os protocolos mais elementares da autoridade pontifícia, com uma rotina diária de séculos – para dar continuidade a uma prática pastoral despida de pomposidade vistosa e principesca. Sen tanto rigor com o ritualismo que o cargo sempre havia exigido, parte decididamente para o encontro com o povo na praça, visita a cadeia, lava os pés do prisioneiros, viaja a Lampedusa, porta de enrada dos refugiados e prófugos que da África se dirigem à Europa. Popular por seu magnetismo em atrair as pessoas em particular e as multidões em geral. Magnetismo que vem de um pastor que sabe colocar-se ao lado das ovelhas – não acima, não fora, não além. Engendra uma empatia imediata com quem costuma circular por uma cidade muda, cega e surda. Sua atenção e sua solicitude preenchem os corações vazios e angustiados. Domina a técnica de falar à multidão reunida na praça e, ao mesmo temo, ao ouvido de cada pessoa. Tanto que, diante de suas intervenções sempre curtas e marcadas por gestos e pausas significativas, não é difícil encontrar olhos atentos e banhados de lágrimas, respiração contida ou acelerada ou expressões como: “parece que ele adivinhou o que eu estou sentindo”, “é como se falasse para mim”, “é o que eu mais queria ouvir”!

Ao intercalar palavras, gestos, saudações e momentos de silêncio – em meio a uma multidão desconhecida, anônima e multiforme – a atitude do papa Francisco como que irmana as pessoas. Irmana-as ao irmanar-se a elas. Cria uma espécie de fraternidade universal, como por exemplo na praia de Copacabana, diante de milhões de pessoas, durante a V Jornada Mundial da Juventude. Se voltarmos ao primeiro item – sobre a linguagem – fundindo-o com a atitude do Pontífice, resulta que seu comportamento mostra-se simultaneamente polifônico e polissêmico. Polifônico, no sentido de empregar várias formas de comunicação, onde o discurso moral, ético ou espiritual nem sempre parece ter a primazia. Esta assenta-se sobretudo na misericórdia evangélica para com os grupos humanos mais pobres, ameaçados, excluídos – os últimos. Vale o mesmo para a entrevistas, os encontros e os longos momentos de contato com o povo na praça. Polissêmico, porque cada olhar, cada sorriso, cada palavra, cada toque, cada abraço, cada visita, cada encontro podem ter distintos significados, alguns voltados para o interior da Igreja, outros para a sociedade e o mundo e outros para o ser humano único e irrepetível.

Tanto ad extra quanto ad intra, o Papa Francisco tem sido capaz se usar a si mesmo e o seu comportamento como um sinal ou um símbolo de mudança na Igreja. O sinal e o símbolo, como sabemos, é bem diferente da palavra. Enquanto esta define e portanto reduz e exclui, o sinal/símbolo se mantém aberto a um leque de interpretações diferenciado, plural e até contraditório. Basta acompanhar de perto as análises que têm sido feitas a respeito das ações do atual Papa. O leque é variado, sem dúvida, mas parece convergir num ponto: há pequenos brotos de mudança na mistura de luzes e sombras que é a trajetória da Igreja. Mudança para um olhar mais compreensivo diante dos fiéis, das pessoas em geral e da sociedade como um todo. Olhar compreensivo que gera posições e ações mais flexíveis. Recorrente em seus comunicados tem sido o binômio bontà e tenerezza (bondade de ternura), o que faz lembrar a postura evangélica de São Francisco. Convém trazer à tona a magem da cana ou do bambu: não quebram diante da força dos ventos e das intempéries porque são capazes de ser flexíveis, de se dobrar. A flexibilidade e a capacidade de mudar, longe de demonstrar fraqueza, são atitudes de uma sabedoria amadurecida nas adversidades do dia-a-dia.

Ainda desta vez, também o comportamento de Jesus representava uma mudança radical. Diante do Templo e da Lei, dos saduceus, escribas e fariseus, das autoridades e dos pobres. Inverte o código religioso da salvação, colocando os pecadores, os pobres e os doentes em primeiro lugar. Condena quem se sente justificado e resgata quem se vê perdido e marginalizado. Como os profetas do Antigo Testamento e como João Batista, anuncia uma nova sociedade, a Jerusalém Celeste, o Reino de Deus; mas, ao contrário deles, propõe o primado do amor, do perdão e da misercicórdia sobre o julgamento. A mudança a que se refere tem um um caráter muito mais amplo do que revolução sociopolítica ou a queda do Império Romano. O Reino tem, sim, raízes na história, mas sua realização plena vai muito além de qualquer projeto material e mundano, pois representa ao mesmo tempo uma obra humana e um dom de Deus.

Conclusão

Entra em cena o desafio: até que ponto o Papa Francisco pode esticar a corda das mudanças, sem rebentá-la? Qual sua verdadeira margem de manobra no interior da Igreja e da cúria romana? Com quanta resistência e com quanta colaboração poderá contar? Como está o jogo de forças – retrógradas e progressistas – nas altas esferas da Igreja? Até onde a memória profética da tradição judaico-cristã pode gerar frutos num contexto de economia globalizada e capitalista, de filosofia neoliberal? Sua bondade e ternura serão suficientemente fortes para vencer a astúcia dos “filhos das trevas”? Vale repetir sua fórmula numa coletiva de imprensa, logo no início do pontificado: “Como gostaria de uma Igreja pobre, voltada para os pobres, os mais necessitados, os últmos!” A frase contém, claramente, um desejo e um desafio, ou melhor, um desejo perfeitamente consciente dos obstáculos que o cercam. A forma verbal “gostaria”, se por um lado denota a abertura ao protagonismo de todos, incluindo a si mesmo, por outro vela e revela forças ocultas que podem bloquear essa intuição, a qual, a bem da verdade, vem do Concílio Ecumênico Vaticano II. Resta-nos, a exemlo do apóstolo Paulo “esperar contra toda a esperança” (Rom 4,18-24), acreditando que “quando sou fraco é então que sou forte” (2Cor 12,10).

 

Roma, Itália, 1º de novembro de 2013