Olhar materno de Deus

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs

Não existe fórmula para um relacionamento sadio e reciprocamente enriquecedor com o “outro, estranho e diferente”. Não existe receita para um verdadeiro contato com quem vem de outro país, fala outra língua, professa outro credo, desfralda outra bandeira e se rege por outras referências culturais. Não existe cartilha para a acolhida ao imigrante, estrangeiro, exilado, prófugo, refugiado… O estabelecimento e o cultivo de novos laços e relações humanas, neste e em outros casos,  não seguem a lógica matemática dos conceitos racionais, mas o intrincado labirinto dos afetos, sensações e sentimentos.

A construção de pontes entre pessoas, grupos e povos diversos não se faz com o concreto do ferro, da pedra e do cimento, e sim com a massa rica, indefinida e indescritível de olhares cruzados, sorrisos trocados, gestos solidários, sons que se hormonizam e palavras bi ou trilíngues. Não me refiro a uma coexistência pacífica ou a uma mera tolerância entre diferenças, como justaposição de água e ajeite. Tampouco falo de uma trégua forçada, onde a paz se reduz ao equilíbrio das armas. Não basta isso, entretanto, é preciso chegar ao dom da escuta, do diálogo, da compreensão, da simpatia ou da abertura… Em síntese, o confronto e encontro profundo, verdadeiro, de espíritos e de valores humanos e culturais.

Vale, contudo, uma tentativa de aproximação. Ou melhor, uma vereda mais curta no caminho a ser percorrido entre o “eu ou nós”, de uma parte, e o “ele ou eles”, de outra. Como encurtar a distância entre os “nossos” e os “outros”, os  de “dentro” e os de “fora”? A vereda ou atalho consiste na tentativa de colocar-se no lugar da mãe, ou seja, na arte de olhar para o outro/a – pessoa, grupo, etnia, nação – com o olhar materno. Não será essa, por outro lado, a maneira de Jesus olhar as pessoas, especialmente as mais pobres e excluídas, mais doentes e abandonadas, mais pecadoras e marginalizadas, mais perseguidas e indefesas… “I più bisognosi e gli ultimi” (os mais necessitados e os últimos – diria o Papa Francisco)? Bastaria trazer aqui o rosto ferido e desfigurado dos possuídos pelo demônio, dos doentes e leprosos, dos samaritanos e estrangeiros, das mulheres e crianças, dos cegos e aflitos…

Um exemplo: caminho pela rua de um bairro mais ou menos suspeito e me deparo com uma pessoa completamente estranha, seja no jeito de vestir, de falar, de andar, de olhar, seja no modo de comportar-se… Talvez mal-vestida, meia esfarrapada, suja, de cor diferente, atitude aparentemente ameaçadora… Enfim, alguém com quem definitivamente não simpatizo, ou, pior ainda, alguém que temo. Por instinto, levo a mão ao bolso, verifico a carteira, desvio uns passos à direita ou à esquerda, posso até cruzar para o outro lado da calçada, evito olhar em sua direção… Em outras palavras, a primeira reação é a de proteger-me e, no limite, partir para a agressão.

Mas se, num relance repentino, me pergunto “qual será seu nome e sua profissão, se é que tem alguma? Onde habitará, terá endereço fixo, uma família, irmãos, irmãs, tios, tias, sobrinhos? Será casado, com esposa e filhos? Mais particularmente, como se chamará a sua mãe e como ela vê este seu filho meio abandonado, para mim simplesmente tão estranho?” No mesmo instante, um vago sentimento de simpatia parece sacudir-me as entranhas. Uma onda de ternura percorre-me as veias, abranda-me o coração. Barreiras invisíveis se quebram e abre-se uma pequena possibilidade de compreensão, por menor que seja…

Outro exemplo: encontro-me diante da televisão, é hora do telejornal. O noticiário destaca um assalto, flagrado pelo sistema eletrônico de segurança, onde vítimas e agressores se desencontram. Correria, tiros, feridos, fuga… Depois, já na delegacia, sob as câmeras, holofotes e microfones indiscretos da mídia, desfilam os rostos dos assaltantes. Uma vez mais, estranhos, malvestidos, pulsos com algemas, olhares enviezados; uns meio envergonhados, outros cínicos ou indiferentes; um menor, outro negro, um terceiro com aparência de classe média… Resumindo, pessoas que tanto os policiais e os repórteres televisivos, de um lado, quanto os espectadores, do outro, classificam como “bandidos, marginais, safados, sem-vergonha”!… Cadeia neles! Minha reação à cena, embora secreta, acanhada e tímida, não é diferente. Prevalecem a antipatia e o instinto de agressividade.

Porém se, num relâmpago, me pergunto “quem serão seus familiares e onde habitarão? Como o estarão vendo neste momento? E mais especificamente, como o vê sua mãe?” Esta, contra tudo e todos, talvez esteja pensando que “tudo isso é verdade, sem dúvida, mas no fundo ele é um bom rapaz”!… Ela conhece seu coração! Novamente percorre-me o corpo uma onda desconhecida de calor humano, como se o sangue tivesse sido irrigado pelo efeito de um antibiótico, uma espécie de remédio contra o um coração de gelo. E, ainda desta vez, uma sombra pesada parece cair de meu rosto de pedra, um véu se abre, e sinto vontade de conhecer seus nomes, sua história, como chegaram até ali… Até meus olhos parecem umedecidos! Muros se rompem e surge a luz de uma pequena dose de compaixão, por menor que seja…

Nem precisaria voltar às páginas do Evangelho para darmo-nos conta que o olhar de Jesus é como um olhar materno sobre pessoas e fatos: os temores e tremores, os embates e turbulências,  as assimetrias e contradições da história, seja esta de caráter pessoal, familiar ou coletivo. É com essa visão misericordiosa e compassiva que Deus se revela na pessoa, obras, palavras, gestos e atitudes do profeta itinerante de Nazaré. Deus com nome de Pai (Abba), coração e olhar de mãe! Os encontros de Jesus com seres humanos curvados pelo peso da lei e do pecado, da culpa e da discriminação, da enfermidade e do abandono, da pobreza e da exclusão social – emergem como a prova mais evidente e eloquente desse olhar materno. Olhar que transparece até mesmo em seus dedos e em suas mãos, no cuidado maternal para com as feridas mais diversificadas do corpo e da alma de cada pessoa, única e irrepetível. Pai que acolhe e perdoa o “filho pródigo”, pastor que conhece a voz e carrega ao colo a “ovelha perdida”, mãe que se compadece e devolve a outra o “filho único da viúva”. De fato, o perdão dos pecados, por uma parte, e a fé dos interlocutores, por outra, constituem a marca registrada de seus milagres e parábolas. Entre ambos, porém, se interpõe o olhar materno de Deus.

Essa marca registrada e a atitude maternal do Messias ganham força especial e inusitada nos capítulos 13 a 17 do Quarto Evangelho: trata-se de uma sequência que incorpora o lava-pés, a última ceia, o diálogo com os discípulos e a oração sacerdotal. Somente João, o discípulo mais amado, poderia ter escrito esses capítulos, tamanhas são “la bontà e la tenerezza” (a “bondade e a ternura”, ainda na expressão do Papa Francisco) que neles se respira. Oxigênio vital, indispensável,  para toda e qualquer existência humana. Nas palavras do quarto evangelista e na linguagem e gestos de Jesus torna-se cristalino não somente seu olhar, mas também seu coração materno.

Ao dar-se conta que logo será entregue na mão das autoridades e será condenado à morte, num gesto característico de comensalidade (partilha de pão e vida) e numa espécie de  testamento espiritual, trata seus seguidores como “filhinhos”, comprometendo-se que jamais os deixará “órfãos”; mostra-lhes que no Reino de Deus poder é igual a serviço; recomenda-lhes o amor recíproco acima de qualquer coisa, “amai-vos uns aos outros”; promete-lhes o envio do Espírito Santo, como o Paráclito e defensor;  garante-lhes que se fará presente até o fim dos tempos, para vencer as forças do maligno; adverte-os para os perigos que os aguardam no mundo do pecado e das trevas; e por fim, intercede por eles junto a Deus, como que devolvendo aqueles que o Pai lhes “havia confiado”. Não parece – tudo isso – o comportamento de uma mãe que, pressentindo a morte, reúne seus filhos ao redor do leito e irriga-lhes o coração e a alma com o bálsamo de suas últimas e mais preciosas palavras?!…

 

Roma, Itália, 22 de novembro de 2013