Onde dormirão os pobres?
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Nunca esquecerei onde estava naquela segunda feira quando o mundo pareceu desabar. De vestido longo, indo para a posse na Academia Brasileira de Letras da queridíssima Cleonice Berardinelli. Não havia táxis e quando se encontrou um, foi preciso enfrentar vários rios de lama e enxurradas de pedras para chegar à Academia. Pior ainda foi voltar para casa, façanha só compensada pelo prazer que foi escutar a fala impecável e refinada de Cleonice com sua voz que parecia música.
Entrar sob um teto seguro e dormir em cama seca foi experiência de alívio até acordar na manhã seguinte com o telefonema angustiado de uma aluna que me dizia não poder sair de casa para ir à universidade fazer a prova. Foi então que a televisão começou a mostrar a sucessão de horrores em que se transformou minha cidade, meu estado, meu povo, minha gente. Em um mar de água, lama e pedras, gente se misturava à enxurrada, pobres corpos arrastados pela força das águas juntamente com tábuas, sofás, geladeiras, televisões, bichos de pelúcia, tristes destroços do que antes eram vidas de pessoas como eu.
Na telinha se sucediam autoridades desorientadas que alternavam conselhos desorbitados para as pessoas deixarem imediatamente suas moradias com considerações inconseqüentes sobre as causas da tragédia, que sempre culpavam os moradores. Como tiveram a idéia de construir seus barracos em semelhante despenhadeiro? Por que insistiam em morar ali? A troco de que não se haviam mudado para outro lugar? Depois começou o circo patético das acusações mútuas, o presidente responsabilizando o governador, o governador jogando a culpa para o prefeito, o prefeito olhando em volta e não tendo a quem culpar e culpando os moradores.
Aos meus ouvidos voltava e voltava, como um refrão doloroso, o título de um já antigo livro do teólogo peruano Gustavo Gutiérrez: Donde dormirán los pobres? Onde dormirão todas estas pessoas que da noite para o dia perderam tudo que possuíam, inclusive o teto que levaram uma vida inteira para ter? Foram enviados para abrigos, escolas, hospitais, CIEPS. Mas…e depois? Quando a chuva passar, quando todo mundo esquecer, quando as encostas voltarem a ser ocupadas porque não há chão, não há teto, não há terra, não há justiça…onde dormirão os pobres?
Onde dormirá o pequeno Vinicius de oito anos para que não morra soterrado enquanto joga videogame sem sequer se dar conta da avalancha que lhe vem por cima? Onde dormirá a telefonista Natalia que falava ao celular com o namorado até dizer o que foi, sem ela saber, seu testamento: “Está caindo tudo aqui. Caiu tudo.” Onde dormirá o filho de seis anos de Verônica de quem os jornais imprimiram o rosto desarvorado diante das águas que o levaram sem que ela pudesse agarrá-lo por um dos braços? E a esposa e filha de Leonardo, estudante de Engenharia que, ao despertar com a lama caindo sobre seu corpo, procurou por elas e já não a encontrou?
Todos eles e elas dormem agora debaixo de muitas camadas de terra, lixo e lama. Ou estão nas gavetas do Instituto Médico Legal esperando que parentes vão reconhecê-los para dar-lhes sepultura. Como eles, muitos outros. Sobem para várias centenas já os mortos no Rio de Janeiro, vítimas da tragédia mais que anunciada que já virou tradição anual das águas de março que este ano vieram mais tarde, em abril, e mais violentas, carregando morro abaixo sonhos, vidas e muito mais.
É fácil culpar os pobres, acusando-os de ignorância e imprudência. Mais ainda : de teimosia por insistir em construir suas casas em terrenos perigosos. Mais fácil ainda culpar os mortos. Todos concordamos que um lixão com toneladas de dejetos não é solo firme nem adequado para se construir habitações onde seres humanos vão morar. Porém quando é a única alternativa e ninguém oferece outra, o que se faz? Ocupa-se o solo que se apresenta, mesmo que seja um lixão. Os pobres não são geólogos nem urbanistas. Vivem em tal precariedade que sua unidade de tempo é o minuto. Com o minuto contam e sobre o minuto presente constroem o pouco que a vida lhes oferece. E em um minuto igualmente perdem tudo, todo o pouco que tinham, e sobretudo as vidas que lhes eram caras e preciosas. E com tenacidade sobre humana se dispõem a recomeçar do zero, com dor redobrada, perdas incalculáveis e teimosa esperança.
Não, senhores, os pobres não têm culpa de estar no lugar errado no momento errado. A responsabilidade é de sucessivos governos que há mais de quatro décadas acompanham o efeito devastador que as chuvas de final de verão realizam em uma cidade cheia de encostas cada vez mais ocupadas por moradias populares e que este ano recebeu uma carga de precipitações de proporções nunca vistas. Como são pobres pode ser adiada a solução? Como não contam nas estatísticas, suas vidas podem estar em risco permanente?
O Cristo Redentor chora sobre a Cidade Maravilhosa como naquele tempo sobre a Jerusalém assassina de profetas. Vê vidas destroçadas, famílias enlutadas, comunidades inteiras destruídas. Seu olhar compassivo se comove vendo os barracões de zinco pedindo socorro à cidade que se espalha a seus pés.
Os movimentos de solidariedade angariam e distribuem donativos por toda parte. A população não fica indiferente. Mas não basta. É urgente uma solução mais permanente. Há que repensar urbanisticamente o Rio de Janeiro. Há que redesenhar com inteligência e cuidado a ocupação de suas encostas. E isso é solução a médio e longo prazo. Não a toque de caixa em ano eleitoral com ritmo eleitoreiro. São vidas, muitíssimas que estão em jogo. Não é brincadeira.
Enquanto esta estratégia urbana não for pensada e, sobretudo executada seriamente, ficará sem resposta a grave e profunda pergunta lançada por Gustavo Gutiérrez: “Onde dormirão os pobres”? Tomara que enquanto esta pergunta ressoar sem resposta, nenhum de nós consiga repousar a cabeça no travesseiro e dormir.