Onde repousa teu coração?

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

Um

Onde repousa teu coração? No sucesso do presente? Na beleza fugaz e efêmera? Na moda que se acende e apaga como a noite e o dia? Mas tudo isso não passam de fumaça passageira e enganosa. Sucessos e fracassos costumam se comportar como ondas alternadas: ora se levantam e se agigantam, ora se curvam e tombam, rebentando irremediavelmente sobre o chão. Ao mesmo tempo, alegram e logo entristecem. Confiar em sucesso é como caminhar sobre corda bamba. A qualquer escorregão, tudo vem abaixo. Verdadeiro show pirotécnico: sobe com profusão de cores, desenhos e brilho; mas, com a mesma rapidez se apaga e desce, convertendo tudo na mais densa escuridão. Quem vive do sucesso, oscila entre a euforia e a tristeza, sem conhecer o repouso do meio termo. Fogos de artifício: após a luz intensa e fugaz, resta um punhado de cinzas que o vento varre. Pó que desaparece ao menor sopro de uma brisa vespertina. O sucesso no presente não passa de uma fortaleza bem frágil, sempre ameaçada pelos imprevistos do futuro, ou pelas sombras do passado.

“Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”, diz a sabedoria do Eclesiastes. O sucesso ou o glamour, com seus revestimentos e cosméticos aparentes, multiplica palcos, cenários, platéias; nutre-se de câmeras e ação, holofotes e microfones; envolve personalidades e celebridades com uma aura aparentemente imortal. Porém, o público que ergue estátuas e as cultua é o mesmo que, cedo ou tarde, irá reduzi-las a ruínas e escombros. Aplausos e vaias se mesclam, se confundem e se sobrepõem com uma alternância espantosa. O exemplo do futebol bastaria para nos abrir os olhos. Heróis de belos dribles estonteantes e de alguns gols, facilmente se convertem em vilões de  inevitáveis tropeções. Nada é mais efêmero e volúvel do que os sentimentos e comportamentos de uma arquibancada compacta. A multidão da platéia “aplaude e pede bis”, como diz a canção; mas também, com o mesmo ímpeto, distribui palavrões e condena ao ostracismo. Vitórias e derrotas sucedem-se, frias e quentes, como as estações do ano. A embriaguez da fama, a exemplo de qualquer tipo de embriaguez, se dissolve numa noite de sono. Podem ser aplicadas aqui as palavras do salmista, embora se refiram a toda a vida humana: “Eles passam como o sono da manhã, são iguais à erva verde dos campos: de manhã ela floresce vicejante, mas à tarde é cortada e logo seca” (Sl 89, 5-6). Coração que descansa sobre o sucesso, rumina e amarga o presságio do esquecimento.

Dois

Onde repousa teu coração? Sobre o dinheiro, a renda e a riqueza; sobre as contas bancárias e as propriedades adquiridas; sobre o brilho das jóias e os bens de luxo; sobre a posse de roupas, carros e equipamentos de última geração? Também aqui os fantasmas do medo rondam as portas e janelas das mansões e dos palácios, por mais herméticas e intransponíveis que elas sejam. Os mais sofisticados sistemas de segurança não conseguem eliminar o espectro da incerteza e da insegurança. Nenhum travesseiro traz tanta insônia quanto o capital acumulado. Todo o que se acumula sofre de duas enfermidades crônicas: apodrece e atrai os abutres. São os tesouros que a traça corrói e os ladrões podem carregar, como bem mostra a sabedoria de Jesus no Evangelho. E continua: onde está teu tesouro, aí está teu coração. Irrequieto e sobressaltado em proporção àquilo que tem que defender. Riquezas exigem armazéns; estes necessitam de guardas; e os guardas formam o olhar do proprietário. Como repousar diante dessa montanha de riquezas, tão oculta, guardada e silenciosa quanto aparentemente barulhenta e cobiçada?

As turbulências do mercado globalizado, o sobe-e-desce das bolsas de valores, a cotação do dólar, os preços dos produtos e a possibilidade de lucros sempre maiores… Tudo isso faz trepidar o colchão sobre o qual teu corpo esgotado busca repouso. São extremamente tênues e débeis os fios que costuram a rede da economia capitalista. Com a velocidade de um toque na tecla do computador, tudo pode se alterar. Fortunas de muitos zeros podem subir e declinar com a mesma rapidez. Não é tão raro que milionários e bilionários tenham de assistir, de um dia para a noite, à evaporação de seus ganhos. Bem diz Shakespeare em uma de suas peças: “tens preocupações em demasia com este mundo; perdem-no aqueles que o compram à custa do excesso de cuidados” (O Mercador de Veneza, Ato I, Cena 1).

Três

Onde repousa teu coração? Na compulsão do consumo, no acompanhamento dos últimos objetos da moda, na procura de objetos que preencham a sede e a fome que assalta a todo o ser humano? Mas todo esse esforço de busca não faz senão aumentar a própria sede e a fome. Neste caso, a matemática parece nos trair: quanto mais artefatos, bijuterias e bagatelas acumulamos, mais se aprofunda o vazio da própria existência. Cada vez mais as vitrines dos grandes centros comerciais – shopping centers – nos atraem e nos fascinam. Luzes, cores, variedades e disposição seduzem o consumidor inveterado. Mas a aquisição dos objetos nos frustra. A posse desfaz a magia. Somente desejamos o que ainda está longe de nossas mãos. Assim que as coisas se tornam nossas, como que perdem o valor que tanto nos atraía. O resultado é encher gavetas e mais gavetas de produtos que, com rapidez extraordinária, se convertem em lixo. Lixo antes mesmo de desfazer a embalagem, antes de chegar em casa! Tudo mexe com nossos desejos e tudo é igualmente descartável. Pulamos facilmente de um desejo a outro e, em consequência, nos empanturramos de bens supérfluos. O mais grave é que o desejo tem uma dinâmica crescente. De um objeto a outro, aumenta simultaneamente o grau de fascínio e de rejeição. Nenhum coração pode repousar sobre o verniz falso das mercadorias que, com um misto de sedução e indiferença se adquirem, se banalizam e se descartam.

Resulta desse processo uma insatisfação progressiva. Compramos para aliviar o desejo, mas este só faz crescer diante das coisas adquiridas. Voltamos à loja com sede redobrada atrás das últimas novidades. Nova compra e nova insatisfação. E assim o círculo vicioso vai se ampliando em espiral. Ficamos presos na ratoeira do consumo, pois sempre um produto ainda inusitado e, portanto, mais fortemente cobiçado. O marketing e a propaganda, com seus agentes de publicidade, se encarregam de manter girando essa roda do mercado. Criam necessidades sempre novas e, não raro, absolutamente dispensáveis. É o que se poderia chamar de globalização intensiva, que tem a função de manter vivo e ampliar o desejo dos que já estão incorporados ao mercado mundial. Paralelo a esse esforço, caminha a globalização extensiva, que, ao contrário, procura incorporar novos consumidores e novos territórios ao mercado global. Consolida-se dessa forma o crescimento compulsivo da economia capitalista, em detrimento do meio ambiente e da qualidade de vida em todas as suas formas, como nos alertam os cientistas, os movimentos sociais e, em especial os ambientalistas. A ordem é produzir, vender/comprar e consumir, numa velocidade tal que caímos no vórtice voraz de uma devastação planetária.

Quatro

Onde repousa teu coração? Sobre títulos, prestígio, nome e renome; sobre a proliferação de mestrados e doutorados, simbolizados no “canudo”; sobre o afã de galgar os degraus da sociedade assimétrica ou da hierarquia institucional; sobre o posto conquistado no mercado de trabalho, a cadeira cativa no campo legislativo ou o poder de influência no labirinto do executivo e do judiciário? Mas, tal como no caso do sucesso e insucesso, aqui também a gangorra não perdoa. O prestígio e a influência são tão voláteis quanto a fumaça ou as promessas de palanque. Pior ainda: raramente se livram do vírus da corrupção, do nepotismo, do abuso e do tráfico da força e de tantas outras bactérias que proliferam nos corredores muitas vezes infectos da política. Que coração pode repousar em meio às intrigas, disputas e ruídos das salas e salões das Câmeras e do Senado? No jogo de “posição e oposição”, vitórias e derrotas estão sempre á espreita. As batalhas se sucedem, os animas se exaltam, multiplicam-se os discursos prolixos…

E que resulta de todo este gasto de energia? Esquerda e direita de embaralham e se confundem de tal forma, que as fronteiras se quedam completamente borradas. A ética do bem comum dá lugar ao jogo de interesses, ao balcão de negócios ou à simples compra e venda de opiniões. Os partidos não passam de escadas para subir da planície ao planalto, do primeiro ao segundo andar. Escadas que se trocam e se abandonam como quem troca de roupa ou calçado. Canais, instrumentos e mecanismos de poder são manipulados de forma inescrupulosa, não de acordo com as necessidades básicas da população, e sim conforme as vantagens e desvantagens das classes dominantes, das elites históricas ou da “nova companheirada”. A noção de democracia se desgasta com práticas que pouco ou nada respeitam as exigências de uma efetiva decisão democrática, participativa. Daí que na área dos países ocidentais, frequentemente o conceito de democracia nada mais é do que o arcabouço legal do sistema de exploração capitalista de filosofia liberal/neoliberal. O jogo de fachada do exercício democrático – eleições, candidatos, urnas, votos, etc. – só faz reproduzir os privilégios históricos e estruturais dos moradores da casa Grande. A democracia ocidental surfa nas ondas superficiais da política, ou da politicagem, sem mergulhar seriamente nas correntes subterrâneas da economia.

Quinto

Onde repousa teu coração? Na astúcia e na malicia que se delicia em orquestrar a vingança? No entrelaçamento de sentimentos de rancor e ódio, cujo objetivo é urdir redes de intrigas e difamações? No terreno da inveja e do ciúme, que só faz crescer a cizânia no meio do trigo? Tramas dessa natureza costumam deixar o coração em efervescência e inquietude constante. Não há descanso possível! Bem sabemos que cada mentira necessita de uma série de outras para manter-se de pé. O mecanismo desencadeado pelo ressentimento cria uma teia de aranha tão inextrincável e labiríntica que facilmente caímos nas próprias armadilhas. “O feitiço se volta contra o feiticeiro”, insiste com razão o ditado popular. Quando entra em jogo não a luz e a verdade, mas a esperteza e a enganação, é preciso arquitetar mil maneiras para superar as “maracutaias” do adversário. Sim, as relações tornam-se ciladas de um inimigo contra o outro. O conflito se instala e impõe uma atenção redobrada. Inaugura-se uma espiral de violência crescente que só faz acirrar os ânimos. Coração que se lança nesse jogo de xadrez perde completamente o sossego. Vive aos sobressaltos: qualquer ruído, qualquer notícia, qualquer sombra toma as dimensões de um fantasma ameaçador.

Nem precisaria acrescentar que o rancor e o ódio, a discórdia e a vingança, a atitude de revanche e desamor comprometem seriamente a saúde física, mental e psíquica. O mesmo ocorre com o sentimento de culpa, fonte de não poucos distúrbios pessoais e relacionais. Quando a culpa e a mágoa se convertem numa espécie de sensação doentia, podemos imaginar reações inesperadas, que, em freqüentes e rápidas oscilações, vão facilmente da euforia à depressão. Boa parte das pessoas cultiva a mágoas e a culpas como verdadeiros bichinhos de estimação. Assim, em meio a um clima de alegria e festa, costumam surpreender seus acompanhantes, como um pássaro errante que precisa encontrar um galho onde efetuar um pouso de emergência, para sustentar o peso de seu fardo, muitas vezes falso e imaginário. Também neste caso, o coração permanece escravo de uma mente mórbida, que não se cansa de encontrar motivos para o pessimismo mais devastador. Em semelhante atmosfera, proliferam as palavras envenenadas, o silêncio ou mutimo constrangedor, as brigas cegas, mudas e surdas pelo poder, o prestígio, a influência.

Numerosos personagens da literatura constituem personificações exemplares da farsa e da astúcia, cuja função é minar o caminho dos demais. Nesse campo, destaca-se de forma notória o gênio de Shakespeare em criar figuras vivas e ativas que se esmeram em costurar intrigas com consequências quase sempre trágicas. As mais evidentes são, sem dúvida, Falstaff, Iago, Edmundo, Lady Macbeth. São seres de inteligência e imaginação extremamente aguçadas e perversas. Trazem ao palco os instintos, impulsos, paixões e interesses que cada um de nós procura esconder no canto mais escondido do coração. Desnudam as contradições e incongruências mais ocultas nas entranhas do ser humano. Para utilizar a linguagem de Freud, esses personagens shakesperianos, três séculos antes da criação da psicanálise, exibem nua e cruamente aquilo que o ego e o superego proíbem ao id de revelar. Se é verdade que Freud sistematiza em termos de conceitos as “ervas daninhas” que se abrigam no inconsciente, o dramaturgo inglês as põe em cena e as escancara na frente do público. Aliás, seu sucesso reside no fato de a platéia identificar-se tão prontamente com os sentimentos contraditórios trazidos ao centro do palco. Não descansa o coração de personagens como Iago, os demônios de Dostoievski ou o Fausto de Goethe. Vivem acorrentados à ratoeira que eles mesmos armaram.

Sexto

E então, onde repousa teu coração? Inevitável a referência a santo Agostinho: o coração humano debate-se irrequieto até que não descanse na Casa de Deus, de onde proveio. Também é inevitável acompanhar as palavras, passos e prática de Jesus. Nu, pobre, livre e alegre, caminha com leveza incrível em direção ao Reino de Deus. Experimentada a intimidade com o pai (Abba), em noites e noites de silêncio e escuta, relativiza bens, títulos, prestígio, poder, riqueza, fama, sucesso, apropria vida… Porque conhece o tesouro escondido, a pérola mais preciosa, a semente que cresce oculta na terra, como deixa transparecer em suas parábolas. A própria impotência e abandono, no alto da cruz, revela um novo poder, o poder infinito do amor, que é capaz de destruir a dialética perversa em que a violência gera mais violência. O perdão como resposta de Deus à agressão humana desfaz a dinâmica espiral da própria agressividade. Ou seja, a vingança de Deus se chama amor e perdão, misericórdia e compaixão. Vale também o exemplo de Saulo, o “judeu irrepreensível”, perseguidor dos cristãos, o qual considera toda sua formação como lixo diante do encontro com a Boa Nova de Jesus cristo, convertendo-se no apóstolo Paulo.

“Coração de gente é terra selvagem”, diz Riobaldo Tartarana, personagem de Grande Sertão – Veredas, de Guimarães Rosa. Desejos e temores, instintos e contradições, sonhos e lutas, perguntas e inquietações, medos e ameaças disputam palmo a palmo desse terreno incógnito. Como encontrar paz em meio a tantas paixões, incongruências buscas e interrogações sem resposta? Somente uma abertura ao mistério de Deus, colocando em suas mãos todas nossas “alegrias e esperanças, tristezas e angústias” pode trazer o repouso. Não se trata de transferir para o além a resolução dos problemas que nos afligem. A oração ou contemplação não modifica nossos problemas, modifica isto sim nossa maneira de encará-los. Por outro lado, a abertura ao mistério divino também nos abre ao mistério humano, à relação eu-tu, ao encontro consigo mesmo e a uma nova convivência com as coisas e com a natureza. Aqui permanece emblemática a figura do pobre de Assis, com seu Canto das Criaturas.

Aí sim, pode o coração repousar. Nada possuindo como próprio, nada tem a perder. Voltando uma vez mais a Santo Agostinho, o nada se torna tudo e o tudo, nada! A pessoa que não esta escrava de suas riquezas, títulos e prestígio pode tranquilamente dispensar fortalezas, guardas, sistemas de segurança. O travesseiro e o colchão se lhe tornam leves, o sono tranquilo e repousante. A transparência lhe dá asas. Os fantasmas e espectros do medo e da inquietação não lhe rondam a casa. Vejam os pássaros do céu e os lírios do campo que, sem qualquer esforço para semear ou armazenar, ganham suas roupas e alimentos da mão do próprio Deus. Se Ele assim os reveste e os nutre, que não fará com seus filhos e filhas, criados à sua imagem e semelhança? Por isso “não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá suas preocupações! Para cada dia bastam seus próprios problemas” (Mt 6, 24-34). Ou ainda: “Não se perturbe o vosso coração (…). Na casa de meu Pai há muitas moradas (…). Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo, 14, 1-21).