Oração nua
Pe. Alfredo J. Gonçalves
São diversas as modalidades de oração: oração litúrgica ou eucarística, revestida de cânticos, preces, leituras, símbolos; oração comunitária, em que predominam a recitação dos salmos, com intervenções ligadas ao cotidiano da comunidade; oração devocional, pessoal, familiar ou coletiva, onde se mesclam diferentes expressões religiosas, de acordo com a cultura de cada grupo ou povo: peregrinações, procissões, novenas, rosário, bênçãos.
Mas há também a oração nua. Neste caso, não há leituras, não há hinos, não há preces. O que pode ajudar é uma melodia de fundo, apropriada ao recolhimento. Também é essencial o silêncio exterior e interior. Trata-se sempre de um momento estritamente pessoal, no qual coração e mente se predispõem para uma harmonia profunda com o Transcendente. Aqui vale acrescentar que o caminho de cada um é absolutamente único e sua experiência intransferível.
Oração nua, porque despida de adornos, de palavras e até de símbolos. O importante é rezar as sensações e sentimentos, procurando trazer à tona impulsos estranhos e ocultos, tornando conscientes instintos e emoções inconscientes. Numa palavra, é uma forma de desnudar-se diante do totalmente Outro. É este, aliás, o segundo sentido da nudez de semelhante oração: o fato de desarmar-se de qualquer tipo de defesa antecipada. Despojados, é preciso deixar que o que temos de particularmente mais íntimo aflore das sombras à superfície e à luz da face do Senhor. Não permitir que o medo e a vergonha bloqueiem esse despojamento.
Num primeiro momento, serão naturais as resistências e as tentativas de fuga. O silêncio questiona, incomoda e interpela. Não raro, uma pessoa pode ser a pior companhia para si mesma. Com freqüência buscamos algo para esconder a própria nudez, ou alguma voz para calar aquela que vem do fundo mais escondido de nós mesmos. O excesso de leitura na oração pode revelar-se uma forma de fuga. É preferível manusear conceitos a confrontar-se no encontro pessoal com Deus. Valemo-nos de qualquer coisa para ocupar o tempo que, gota a gota, parece não passar.
Vencido esse primeiro obstáculo, pode vir a desilusão. É o tempo do deserto, da escuridão, da indiferença e do silêncio de Deus. Estamos ansiosos, vivemos numa sociedade imediatista, queremos respostas rápidas aos problemas que nos atormentam. Buscamos receitas prontas, analgésicos para as aflições do cotidiano. Até o momento em que nos damos conta que a oração, em verdade, não modifica nossos problemas diários, e sim nossa maneira de encará-los. Deus é fiel não porque venha imediatamente em nosso socorro na hora da tribulação, mas porque nos oferece a possibilidade de procurar o socorro junto às pessoas que nos cercam e nos amam. A fidelidade de Deus se revela no respeito incondicional à liberdade do ser humano e em sua presença amorosa, mesmo que todos nos abandonem. Deus se revela, a um só tempo, poderoso e frágil: seu único poder é o amor. E quem ama expõe-se à negação do outro ou, a exemplo da flor, está sujeito às tempestades e ventanias mais avassaladoras.
Mas é a partir daí que começa propriamente a oração. Desfeitas a pressa e as ilusões, o silêncio principia a revelar sua fecundidade. Na abertura ao Transcendente, sua luz penetra as sombras mais ocultas de nosso ser, ilumina as incongruências, hipocrisias e contradições desconhecidas. O progressivo autoconhecimento dá início a um processo longo e lento de dissolução e libertação. É como se um espelho nos devolvesse um rosto disforme, desfigurado, e tratamos logo de tomar providências para corrigi-lo. A luz identifica, escancara e dilui as trevas mais profundas. “Na lembrança, assim como na chama, queimam-se todas as impurezas da vida” (GUYAU, Jean-Marie. A arte do ponto de vista sociológico. Martins Fontes Editora, São Paulo, 2009, pág. 255). Da mesma forma que as estrelas, ela brilha mais forte quanto maior a escuridão. É a verdade que está para além, não para aquém, da razão.
Nesta relação íntima e mística, desnuda-se também a desarmonia do coração e da mente. Damo-nos conta dos mil ruídos e rumores que nos cercam, sejam eles externos ou internos. Até mesmo o silêncio pode converter-se num tremendo ruído. É preciso distinguir silêncio e mutismo. Este representa fechamento em si mesmo, recusa à comunicação. Cria situações constrangedoras em ambientes familiares, comunitários ou de trabalho. Torna-se um deserto estéril. O silêncio, ao contrário, é sempre povoado e fecundo, ou de recordações da própria trajetória histórica ou da presença de Alguém que nos faz companhia. Nessa dialética entre ruído, mutismo e silêncio, a oração nua constitui uma espécie de alquimia que converte os ruídos da vida secreta melodia. Não que os barulhos cotidianos sejam eliminados como que por encanto, mas é possível descobrir, para além da agitação febril que caracteriza a existência moderna, uma harmonia misteriosa e inesperada. No mundo urbano, esse processo de alquimia é ainda mais custoso, mas também elementar.
Há, porém, um passo a mais na oração nua. A relação com o totalmente Outro reclama a relação com o outro. Ela nos devolve às atividades do dia-a-dia e pergunta pela autenticidade de nossas atitudes. O calor misterioso e espiritual do momento bate-se contra os blocos de gelo que, no trato com determinadas pessoas, situações e conflitos, vamos acumulando no coração. Se perseverarmos na oração, esse calor tende a iniciar um processo de derretimento do gelo. A oração tem repercussões incontestáveis na família, na comunidade, na vida social, política e econômica. Projeta raios de luz ao seu redor. Ela fornece elementos para desatar uma série de nós em que nos acorrenta a existência cotidiana. Daí a reciprocidade que, aos poucos, vai se estabelecendo entre o contato íntimo com Deus, de um lado, e o comportamento com as pessoas que nos cercam e com quem convivemos, de outro. Ambos passam a exigir-se, a complementar-se, a interpelar-se reciprocamente. Abrir-se ao Transcendente e abrir-se aos outros são duas dimensões de uma mesma atitude. Porém, não há magia. O processo tem avanços e recuos, é turvo e luminoso a um só tempo.
Um último aspecto da oração nua é sua relação com a natureza e com o belo. Aqui a oração revela-se uma obra de arte. Da mesma forma que o artista vê no bloco de mármore ou na paisagem a matéria prima de sua obra, o místico refaz a partir dos fatos cotidianos uma harmonia com a criação. O artista recria esteticamente a matéria bruta da pedra, da madeira, do aço, dos acontecimentos; o místico recria espiritualmente os embates de um cotidiano dilacerado por ruídos e contradições. Ambos utilizam a sensibilidade estética e espiritual para desvendar o sentido oculto por trás das aparências. O homem de oração é um artista da vida, da história e da natureza. Podemos concluir com as palavras de Guyau: “Assim como existe uma cidade ideal da religião, existe também uma cidade ideal da arte” (Idem, pág, 104).
Tânia Serrano Ramos
jan 26, 2010 @ 23:23:33
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