Paulo, Apóstolo dos Gentios: Inspiração para hoje
Maria Clara Lucchetti Bingemer *
As comemorações do ano paulino, que se estendem até a metade de 2009, nos trazem de novo à tona esta grande figura do apóstolo que foi o artesão do cristianismo primitivo. Paulo, conhecido como apóstolo dos gentios, foi quem teve a grande intuição que o cristianismo necessitava: independizar-se da sinagoga, a fim de ganhar mundo e chegar aos gentios e incorporar todos que estavam distantes.
A Carta aos Romanos demonstra bem isso. Nela, Paulo parte da contraposição entre Cristo, justiça de Deus, e a justiça que os homens pretendem alcançar por seu próprio esforço. Não nega o valor da antiga economia da salvação, mas lhe marca limites precisos.
Poderia parecer que Paulo assim exclui os judeus da salvação. Mas não é assim, pois também critica os cristãos provenientes da gentilidade, que numa soberba mal dissimulada desprezavam os judeus.
Contra as conotações racistas que pareciam insinuar-se, ele deixa muito claro que, diante de Deus, não há acepção de pessoas. Todos os fiéis, seja qual for a sua origem, devem formar um só corpo (Romanos 12, 1-15). Além disso – e este é o ponto mais importante -, Paulo está convicto de que aos israelitas, textualmente, pertencem a adoção filial, a glória, as alianças, a legislação, o culto, as promessas, os patriarcas. Deles é, conforme Romanos 9, 4-5, o Cristo, segundo a carne.
Paulo termina sua carta entoando hino ao mistério de Deus, insondável muitas vezes para nós. Encerra o capítulo 11: “Ó abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis seus juízos e impenetráveis seus caminhos. Quem com efeito conheceu o pensamento do Senhor? Ou quem se tornou seu conselheiro? Ou quem primeiro lhe fez o dom para recebê-lo em troca? Porque tudo é d’Ele, por Ele e para Ele. A Ele a glória, pelos séculos! Amém”.
Diante da complexidade da pessoa de Paulo, radicalmente apaixonado por Cristo e ao mesmo tempo aberto à pluralidade de seu tempo, somos interpelados a ser cada vez mais conscientes e prontos a testemunhar nossa identidade cristã, ao mesmo tempo em que nos abrimos com respeito e atenção ao que a diferença do outro tem a revelar-nos quanto ao mistério de Deus. Em Paulo, o problema parece ser mais complexo. O zelo pelo judaísmo que o impulsionou a tomar parte na repressão inicial contra o cristianismo nascente acabou se transformando em ardor proselitista pela nova religião, ao mesmo tempo em que sentia dentro de si o desgarramento interior por causa de sua pertença ao povo de Israel.
Nenhum outro escrito exprime isso melhor do que a Carta aos Romanos inquestionavelmente paulina. Junto com a Carta aos Gálatas, focaliza o problema principal da teologia paulina: a justificação pela fé. Mas enquanto a Carta aos Gálatas foi escrita no ardor da polêmica intra-cristã, entre os que no cristianismo queriam conservar as observâncias mosaicas e os que diziam que não era necessário, a Epístola aos Romanos é fruto de uma reflexão amadurecida posterior.
Eis um breve resumo dela. O contexto é o de uma comunidade, a de Roma, onde – de acordo com as notícias recebidas por Paulo que ainda não tinha ido àquela cidade – só chegam informações por cartas ou por mensageiros. Segundo essas informações, as divergências naquela comunidade parecem conduzir a sérios desentendimentos entre os convertidos do judaísmo e do paganismo. O escrito prepara uma visita do apóstolo a essa comunidade, propondo uma solução para os problemas lá existentes, especialmente o da relação judaísmo-cristianismo.
Na Epístola, Paulo parte da contraposição entre Cristo, justiça de Deus, e a justiça que os homens pretendem alcançar por seu próprio esforço. Não nega o valor da antiga economia da salvação, mas lhe marca limites precisos. Em Romanos 7,12, ele escreve: “A Lei é santa. Justo e bom é o preceito”. Assim enuncia, claramente, Paulo de Tarso. A Lei fez o homem conhecer a vontade divina. Ao mesmo tempo, Paulo enfrenta o problema da própria debilidade e a consciência da própria culpa e não consegue ver na Lei a ajuda necessária para superá-las. Daí, a sua solução: “Somente em Cristo encontra-se essa ajuda e ela se obtém através da fé”.
A conseqüência lógica seria a exclusão da salvação dos judeus que permanecessem no judaísmo. Porém, não é exatamente a solução que vai dar. Mas eu digo: é claro, se fôssemos lógicos, tiraríamos essa conclusão. E, por isso, não é estranho que os escritos paulinos tenham sido considerados fonte da polêmica judeu-cristã e até acusados de serem anti-semitas.
Contudo, Paulo, na mesma Carta aos Romanos, não parece satisfeito com aquela dedução e passa a polemizar com os cristãos provenientes da gentilidade que numa soberba mal dissimulada desprezavam os judeus. Contra as conotações racistas que pareciam insinuar-se, ele deixa muito claro que, diante de Deus, não há acepção de pessoas.
Nos capítulos 10 e 11, a argumentação torna-se um tanto confusa, pois confusa parece estar a mente de Paulo perante o mistério da salvação e os insondáveis desígnios de Deus. Por um lado, ele vê o que acredita ser a incredulidade de Israel e parece que, desse modo, fica fechada para esse povo a porta da salvação. Por outro lado, porém, tem que reconhecer que os dons e a vocação, no sentido de eleição de Deus, são sem arrependimento, irrevogáveis.
Como solucionar essa contradição? Ele conclui afirmando que Deus encerrou todos na desobediência para a todos fazer misericórdia (Romanos 11,32). Acaba entoando um hino à misericórdia do Senhor. A solução final cogitada por Paulo apela para o mistério e, ao mesmo tempo, apresenta uma certeza: “Não quero que ignoreis, irmãos, este mistério, para que não vos tenhais na conta de sábios. O endurecimento atingiu uma parte de Israel, até que chegue a plenitude dos gentios. E assim, todo Israel será salvo, conforme está escrito: “De Sião virá o libertador e afastará as impiedades de Jacó, e esta será minha aliança com eles, quando eu tirar seus pecados”.
Paulo anuncia uma misericórdia para todo Israel e não apenas para aqueles que tinham aderido ao cristianismo. Paulo se encontra desgarrado, entre a sua fé cristã e a sua pertença ao povo de Israel. E, por isso, também, fala contra os cristãos da gentilidade dizendo: “Do que vocês se vangloriam? Vocês são apenas ramos de oliveira silvestre enxertados no tronco da videira autêntica capaz de dar frutos e esse tronco é Israel. E o tronco não foi arrancado”.
E, por isso, Paulo acaba, na realidade, entoando esse hino ao mistério de Deus: “Não quero que ignoreis este mistério”.
Para Paulo, mistério, fundamentalmente, é o pensamento de Deus que ele diz: “É insondável”. E, portanto, deixa em aberto. Eu creio que nós, cristãos, nem sempre temos lido com suficiente isenção esta grande Carta aos Romanos em que acaba, aqui, depois daquela citação de Isaías, dizendo: “Quanto ao Evangelho, eles são inimigos por vossa causa”. E fica, mais uma vez, quase que uma contradição. Por vossa causa, ou seja, por causa dos gentios. “Mas, quanto à eleição, eles são amados, por causa de seus pais. Porque os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento”.
Diante disso, eu creio que nós, cristãos, temos também que reconhecer, em Israel, um mistério histórico. À distância de 20 séculos, esse mistério continua para nós. É o mistério de uma vocação que é irrevogável, que continua a ser válida. É o mistério de um Deus de misericórdia que nos chama a todos à salvação e, do qual esperamos a presença salvadora. Olhando Paulo e olhando essas contradições que estão nos seus escritos e que ele não consegue resolver e, por isso, apela ao mistério de Deus, tenho a impressão de que ele tinha em mente dois caminhos: o da Igreja, que ele escolheu com a fé no Cristo, uma fé a ser proclamada às nações; e o da Sinagoga, que mesmo que ele não quisesse mais seguir e que sentisse como um desgarramento dentro de sua própria carne, acaba tendo que reconhecer que continua a ser um caminho de vocação do Deus único.