Presidenta, demita o general…
Francisco Bicudo
Um dos momentos mais emocionantes da posse da presidenta Dilma Rousseff aconteceu quando, no discurso do Parlatório, ela fez referência aos companheiros mortos e desaparecidos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Dilma lembrou que “é o embate civilizado de ideias que move as grandes democracias como a nossa”. Reafirmou “não carregar nenhum ressentimento, nenhuma espécie de rancor”. E foi explícita ao dizer, em alto e bom som, sem tergiversar, que a geração dela “chegou à política em busca da liberdade, em um tempo de escuridão imensa. Pagamos o preço da nossa ousadia, ajudando o país a chegar até aqui. Aos companheiros meus que tombaram nessa caminhada, minha comovida homenagem e minha eterna lembrança”.
Foi difícil conter as lágrimas quando o primeiro Presidente operário/migrante nordestino passou a faixa para a primeira mulher Presidenta. Foi bonito e importante ver a Presidenta passando em revista às tropas e recebendo delas reverência; foi bonito e importante acompanhar os comandantes militares batendo continência para a Presidenta. Foram momentos simbólicos, entusiasticamente reveladores de diferenças entre ditaduras e democracias.
Peço licença para voltar um pouco mais no tempo, puxando da memória uma Dilma que ainda ensaiava quem sabe seus primeiros passos como possível pré-candidata à sucessão do presidente Lula. Em maio de 2008, a então ministra da Casa Civil esteve em audiência na Comissão de Infra-Estrutura do Senado e foi questionada pelo senador Agripino Maia (DEM-RN) sobre ter mentido em sessões de tortura. A resposta de Dilma foi acachapante e demolidora: “Eu menti sob tortura, senador, para salvar outros companheiros da dor da mesma tortura. O que estava em questão era a minha vida e de meus companheiros. E mentir na tortura não é fácil. Aguentar a tortura é algo dificílimo. Todos nós somos muito frágeis, somos humanos, temos dor, a sedução, a tentação de falar o que ocorreu. A dor é insuportável, o senhor não imagina o quanto”.
A explosão firme de sinceridade e de dignidade revelou, para quem ainda tinha dúvidas, um ser humano de máxima grandeza, de generosidade extrema, uma mulher preparada para ocupar o posto máximo da República. Essa firmeza íntegra de caráter e essa coerência com a História suscitaram comentários de admiração como o que a jornalista Mariluce Moura, também uma vítima das atrocidades cometidas pelos militares, postou no twitter, logo após a posse: “É extraordinário ter uma mulher na presidência do país. Ainda mais quando essa mulher tem uma excepcional história de resistência à ditadura. Quando ela partilhou a vitória com tantos companheiros que tombaram foi demais”.
Dilma foi uma das tantas protagonistas da chamada Geração de 1968. Sabe o que é viver sob ditadura. Sabe o que é resistir a ditaduras. Conhece o valor das democracias. Ousou lutar… ousou vencer. E é justamente por conta dessa resistência ousada, coerente (faço questão de repetir essa palavra, repleta de significados) e vencedora que se torna inaceitável a presença, no governo dela, de uma figura como a do general José Elito Siqueira, escolhido Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional do governo (ao que se sabe, teria sido indicado pelo Ministro da Justiça, Nelson Jobim, outra personagem nefasta quando o assunto é a ditadura militar. Mas esse talvez seja tema para outro post).
Sem travas na língua, e muito provavelmente expressando o sentimento de tantos outros representantes dos círculos militares, principalmente os que já usam pijamas (sem falar nos civis adeptos fervorosos desse discurso), Siqueira afirmou, logo após tomar posse, que “a existência de desaparecidos políticos não deveria ser motivo de vergonha para o Brasil”. Condenou ainda a possível instalação da Comissão da Verdade e criticou duramente qualquer tentativa de investigar e esclarecer os crimes cometidos pela ditadura. Concluiu com um perigoso e descompromissado “temos é que pensar para frente”. A considerar tal raciocínio, e guardadas as devidas proporções, estaríamos também a dizer à sociedade alemã “chega, esqueçam a bestialidade do Holocausto, foi só um episódio, o futuro nos aguarda”; seria ainda como sugerir aos sul-africanos e a Nelson Mandela que apagassem da História os quase 50 anos do animalesco regime do apartheid, para vislumbrar apenas “o que está por vir”. Inaceitável.
À declaração do Ministro se junta a informação publicada hoje pela Folha de São Paulo: José Elito “foi de brigada que lutou no Araguaia”, diz a manchete da matéria, na página A5, caderno Poder. O texto faz ressalvas e de fato deixa dúvidas sobre a participação e o envolvimento diretos do Ministro nas ações que resultaram no assassinato de dezenas de militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B) na Guerrilha do Araguaia (1972-1975). Mas é incisivo ao revelar que o general “graduou-se na mesma época e na mesma brigada de paraquedistas que combateu a Guerrilha”, tendo se formado “no curso de Forças Especiais, tropa de elite do Exército treinada em técnicas de contraterrorismo e ações contra guerrilha”. Diz ainda a matéria que “o período de Elito nos paraquedistas coincide com boa parte da participação da brigada no Araguaia”. Trocando em miúdos: o Ministro pertenceu a um dos destacamentos mobilizados para enfrentar os comunistas; a confirmar, e ainda carente de apurações mais detalhadas, pode até ter tido participação efetiva nos combates. Talvez por essas razões ache normal, apenas um fato histórico o Brasil ter desaparecidos políticos.
Vergonha, general, é o Brasil ainda não ter seguido o exemplo da vizinha Argentina, que viveu uma ditadura ainda mais sanguinária que a nossa (30 mil mortos e desaparecidos), mas que, dentre tantas outras ações de reparação e resgate histórico, condenou à prisão perpétua no final do ano passado, por crime de lesa-humanidade, o general-tirano Jorge Rafael Videla. Golpista de primeira hora, Videla liderou a derrubada da presidenta Maria Estela (Isabelita) Perón em 24 de março de 1976, tornando-se o primeiro presidente-ditador do ciclo autoritário hermano.
Não, general, a Comissão da Verdade não representa revanchismo, mas um democrático e inadiável reencontro com nosso passado, “para promover o esclarecimento público das violações de direitos humanos praticados no contexto da repressão política”, como dizia o texto original do Plano Nacional de Direitos Humanos – versão 3, lamentavelmente modificado por determinação do presidente Lula, depois de pressões e bravatas do Ministro Jobim.
Como afirmou Flavia Piovesan, procuradora do Estado de São Paulo e professora da pós-graduação das Pontifícias Universidades Católicas de São Paulo e do Paraná (PUC/SP e PUC/PR), em matéria publicada pelo site do Sindicato dos Professores de São Paulo em fevereiro de 2010 (http://bit.ly/c7qVhF), “é fundamental esclarecer os casos de tortura, as prisões, os exílios, como se deram as mortes e os desaparecimentos em estabelecimentos do Estado, até para que as famílias atingidas tenham direito ao ritual do luto. Não lidar com o passado é uma tortura psicológica para esses familiares. Há ainda uma perspectiva de identidade coletiva. Não é admissível que se apague esse período da história brasileira. A consciência sobre o passado é imprescindível”.
Na mesma matéria, Sergio Adorno, sociólogo e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), admite que há situações em que a verdade é dolorida para todos os lados envolvidos na disputa, mas destaca que foram violações de direitos humanos cometidas por agentes públicos, representantes do Estado, e que se julgam impunes. “Alguns dizem que, em situações extremas, tais violações são aceitáveis. A Comissão quer dizer que isso nunca é aceitável”. Para o coordenador do NEV/USP, a democracia não se consolida se há temas tabus, sobre os quais não se pode falar.
A presença do general José Elito no ministério é, pelas mais diferentes razões, incoerente e incompatível com o projeto político e de governo liderados pela Presidenta Dilma. Conciliar não significa esquecer. A guerrilheira, com orgulho, que resistiu à perseguição, ao autoritarismo e à tortura e que prestou emocionante homenagem aos companheiros mortos e desaparecidos em sua posse tem agora, no exercício do cargo máximo da nação, a oportunidade histórica de promover o reencontro democrático do Brasil com seu passado recente. Não tememos esse encontro; ao contrário, estamos desejosos de que aconteça.
Por isso, Presidenta, sem tergiversar, e com todo o respeito, fica aqui um singelo pedido de um cidadão brasileiro e seu eleitor: demita o general.
ÂNGELA
jan 21, 2011 @ 12:35:49
Bom dia a todos os brasileiros e brasileiras!
Quero apenas expressar a minha alegria em ver um comentário tão bonito e bem redigido por um homem a respeito da nossa querida presidenta, um reconhecimento da força, da capacidade e da integridade de uma mulher que foi tão flagelada, oprimida…
Mas quero emitir a minha opinião sobre o general e outros mais, pode ser uma questão de estratégia que ele permaneça por algum tempo…
O k?
Vamos aguardar!