Profetas, romeiros e migrantes
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Desloco-me para Juazeiro do Norte – CE, para uma espécie de leitura orante do já bem conhecido episódio do profeta Elias (1 Reis, 19,4-8), no espírito e na memória do Pe. Cícero Romão Batista. Leitura que ganha maior relevância com a nova postura da Igreja e da Pastoral da Romaria, especialmente na pessoa de Dom Fernando Panico, bispo da Diocese de Crato, na tentativa de reabilitar a figura e a santidade do “Padim Pe. Ciço”. Mas também com o empenho de representantes do mundo acadêmico e do poder público, além de outras entidades e organizações da região. Também ganham maior visibilidade as dores e esperanças dos romeiros que, em sua fé e devoção, acorrem à cidade de Juazeiro. No pano de fundo de uma espiritualidade do caminho e do templo, recíproca e complementar, convém sublinhar alguns pontos.
- 1. O cansaço do profeta/romeiro
O romeiro é profeta e é caminhante, como Elias. Como este, move-se e faz mover a história. O simples fato de marchar contribui para abrir novas veredas e novos horizontes, diante dos tiranos que pretendem controlar o tempo. Memória e profecia são as armas subversivas do romeiro e do migrante. Memória do paraíso perdido, profecia da terra prometida. No caminho, um passo após o outro, num cotidiano que não poupa sofrimento, mas que também reforça a fé. Muitas possibilidades se abrem quando o romeiro se põe em marcha, rompendo o curso da história.
Ainda como Elias, o romeiro sente cansaço, por vezes até revolta e perplexidade diante dos desígnios ocultos de Deus. Por que tão dura é a vida e a lida? Por que tão caro em suor e lágrimas é o pão de cada dia? Por que a seca e a injustiça, o abandono e a fome? Por que a indiferença dos poderosos e do governo? Por que o céu permanece aparentemente mudo? O que quer de nós o Senhor do mundo e da história? O sentimento de revolta ameaça tomar o coração e a alma.
Perguntas sem resposta, males sem remédio. Prevalece o silêncio e o mistério. Valha-nos o Pe. Cícero e Nossa Senhora das Dores! Em seus braços colocamos nossos rostos batidos pelo sol e pelo vento, nossos corpos arqueados sob pesados fardos, as tribulações e turbulências de nossa trajetória. O desânimo bate à porta, os pés se recusam a caminhar. Torna-se inevitável uma prostração crescente e, não raro, desesperadora.
- 2. A árvore como templo
Sorte que pelo caminho, o peregrino encontra uma árvore amiga, um juazeiro, por exemplo. Pode descansar na sombra, contar com um pouco de água fresca. Encontra outros irmãos de peregrinação. As conversas se estendem noite adentro, misturando tristezas e angústias, alegrias e esperanças. Histórias se cruzam e se entrelaçam na dor e na busca. Ali, à sombra da árvore, o peregrino agradece as graças recebidas, entoa seus benditos, e coloca novos pedidos nas mãos de Deus, através do “Padim Ciço”. A sombra é refrigério para o sol inclemente, espaço de encontro e intercâmbio. A condição de um é a condição de todos, a luta de um é a luta de todos. As palavras ditas e ouvidas aliviam o peito, trazem novo respiro à vida, tornam mais leve a carga.
Se a árvore fornece sombra e água, louvado seja Deus. Mas se, além disso, tem uma palavra amiga, um abraço fraterno e uma mão estendida, então o romeiro sente-se na própria casa. A espiritualidade do caminho encontra abrigo na espiritualidade do templo. Ambas se complementam, se mesclam e se interpelam. Ambas se enriquecem mutuamente. O juazeiro com sua sombra se transforma em santuário e morada da fé. Referência para os que sofrem, mas seguem na busca. Nesse clima de acolhida e solidariedade refaz as forças para lançar-se novamente ao caminho.
O peregrino, quanto mais caminha mais depura a mala e depura a alma. Purifica a existência daquilo que é inútil ou superficial. Atém-se ao essencial. Focaliza o foco de suas andanças num horizonte bem determinado. Caminhar é relativizar tudo que é secundário, apegando-se ao absoluto. Torna-se evidente a transitoriedade da existência e das coisas, ao mesmo tempo que se reforça a relação com as pessoas e com Deus. Pe. Cícero faz a ponte entre a terra que pisamos e a terra que buscamos. Os espaços do santuário também se relativizam, na medida em que se colocam a serviço das pessoas que chegam, e não das estruturas. Caminho e templo se purificam reciprocamente, na memória do Patriarca de Juazeiro.
- 3. Os anjos e o alimento
À sombra amiga e à água fresca, à palavra amiga e ao sorriso aberto, a árvore pode ainda oferecer seu fruto. Alimento que sustenta os caminheiros famintos. Os anjos de Deus, tocados pelo fervor e a compaixão de Pe. Cícero, abrem as portas aos romeiros. Às dezenas, centenas e milhares, estes vão chegando de todos os lados, de longe e de perto. Vêem com seus olhares marcados pelas intempéries da vida e com seus cantos de súplica e agradecimento. Fé e esperança os movem e motivam.
Movem e motivam também a população que os recebe. Uns e outros se transfiguram na celebração da festa. Sorrisos e abraços se multiplicam pelas ruas, praças e igrejas. Feliz de quem é acolhido, mais feliz ainda quem acolhe. A lógica da graça se sobrepõe à lógica do cálculo e dos lucros e prejuízos. Todos ganham na medida em se abrem à experiência do encontro. Encontro com Deus, encontro com o outro, encontro consigo mesmo. Romaria é oportunidade de encontro e reencontro.
Saciada a sede e a fome, então sim, o retorno ao cotidiano da existência ganha novas energias. Com os que partem, vai a certeza de que sob a árvore amiga residem anjos irmãos , pessoas dispostas a receber e reanimar os romeiros. Para os que permanecem, fica a alegria de ter convertido a casa de Deus numa sombra refrescante para os pobres. Templo e caminho se dão as mãos, santuário e estrada se alimentam da presença do Espírito. Ao contrário do que aparecia na revolta do cansaço, Deus não abandona os sofredores desta pátria estrangeira. É assim que os romeiros lembram a própria condição do ser humano, hóspedes e peregrinos da terra, em busca da pátria definitiva.
- 4. Retomada do caminho
Os pés que caminham revelam e escondem um mistério. Reabastecidos de sombra, água e pão, os peregrinos encontram-se fortalecidos para retomar a estrada. Retornam a casa onde lhes espera os embates do cotidiano. No coração, a esperança de que Deus, pela intercessão de Pe. Cícero e de Nossa Senhora das Dores, Deus há de prover para que o ano seja abençoado pela chuva. Deus há de livrar as famílias das drogas, do álcool e da violência.
E há de dar forças para enfrentar os poderes do mal que violam o direito do pobre e lhe tomam os frutos do trabalho. Não, Deus não abandona quem recorre à sua misericórdia, Deus não fecha a porta a quem bate, Deus não recusa um coração que o procura. Só Nele o pobre sofredor encontra uma rocha firme e um abrigo seguro. Ele socorre os aflitos e derruba do trono os poderosos.
Mas o caminho é longo e cheio de tentações. No caso do profeta Elias e de Jesus, são 40 dias e 40 noites, lembrando os 40 anos de travessia do Povo de Deus pelo deserto. Terreno árido e cheio de perigos, como o sertão e o agreste nordestino. Mas agora o romeiro leva a benção de “meu padim Pe. Ciço”, que não esquece o povo sofredor. Tem forças para mais uma etapa de sua existência atribulada. O medo foi substituído pela fé, o desânimo pela esperança, o individualismo pela solidariedade. A sombra do santuário, a água viva da Palavra de Deus e o pão da eucaristia haverão de sustentar o romeiro e sua família.
- 5. O horizonte da fé
Reabastecido, Elias marcha em direção ao monte Horeb, a montanha de Deus. Os romeiros, profetas do caminho, também retomam a direção de sua meta: a família, a comunidade e o Reino de Deus. Juazeiro do Norte constitui uma parada para repouso, parada que, a cada ano, restitui as forças para seguir buscando o farol do porto seguro. De etapa em etapa, é preciso vencer o mal escondido nas armadilhas dos filhos das trevas, e escondido também no lado selvagem do coração humano. Luzes e sombras se misturam e se confundem nas curvas da travessia e nos passos titubeantes de quem caminha.
Porém, com o auxílio de Pe. Cícero e a Mãe das Candeias, o peregrino vai iluminando os buracos escuros do caminho e do próprio coração. Aproxima-se do horizonte, que sempre se afasta, porque a caminhada não tem fim… Ano que vem, será preciso voltar à sombra do juazeiro, beber um gole de água, fartar-se do pão vivo, para vencer os novos obstáculos que hão de surgir. E assim sucessivamente… Romeiros em terra estranha, a caminho da Casa de Deus.