Quem tem medo do 11º Ministro?
Chico Whitaker
A história da Lei da Ficha Limpa, que ainda não terminou, é um roteiro de novela, das mais emocionantes. Cheia de suspenses, de momentos de alegria e de tristeza, de sorrisos e de esbravejamentos, de surpresas e de alívios. E ela está tendo direito até a um último capitulo: dentro de certo tempo, para quebrar o empate em que se encontram, os “bons” e os “maus” vão se enfrentar, na sala majestosa da mais alta Corte do país, sob as vistas dos poucos que lá poderão entrar mas também pela televisão em todo o Brasil, como uma novela de sucesso.
Quando ela começou, como Iniciativa Popular de Lei, era bem menor o número dos que a acompanhavam. Grande parte das pessoas que dela tomavam conhecimento não acreditava que sequer pudesse seguir adiante, embora um fato auspicioso tenha marcado seu lançamento: o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, autor da proposta, obteve a adesão unânime -chame-se a atenção, unânime- da Assembléia Geral da CNBB. O que asseguraria que a coleta de assinaturas alcançaria todos os rincões do país, pela capilaridade que tem a Igreja Católica.
Uma vez iniciada, ela começou a encontrar resistências, algumas esperadas, outras inesperadas: entre as primeiras a de juristas e advogados, uns indignados outros preocupados com o atentado ao principio universal da presunção de inocência que se estaria pretendendo perpetrar; entre as segundas, a de movimentos sociais que temiam que a nova lei tornasse seus lideres inelegíveis, em tempos em que se tenta criminalizar sua ação. Mas devagar a coleta foi avançando, com tomadas de posição que permitiam a superação de muitas dúvidas.
Quando um ano e meio depois se atingiu o mínimo do milhão e trezentas mil assinaturas necessárias, o projeto foi entregue à Câmara, em ato com boa repercussão na mídia. E novos personagens entraram em cena: jornais e televisões. Estes atiçavam os brios dos parlamentares e da Mesa da Câmara: o projeto irá para a gaveta, sairá da gaveta?
O problema de ter que tramitar como Iniciativa Parlamentar foi resolvido rapidamente, com mais de vinte parlamentares o assinando imediatamente. Surgiram então veementes resistências, de onde pouco se esperava, criando novas áreas de tensão, que levantavam a duvida até sobre o interesse do governo no projeto.
Com todos esses ingredientes a novela ganhou uma audiência maior, permitindo que a coleta de assinaturas ainda continuasse. Foram logo conseguidas mais 400.000 , e outras 400.000 com a entrada no cenário de uma organização internacional especializada em mobilizações pela Internet. O fato estava consumado, a batata quente estava nas mãos dos nossos congressistas.
Criou-se então o suspense com a nuvem da dúvida surgida no dia mesmo da entrega: o projeto levado ao Congresso propunha que só com uma condenação em primeira instância os candidatos já se tornariam inelegíveis. Se fosse esta a norma, dizia-se claramente no Congresso, ele dificilmente seria aprovado.
Ano legislativo terminando, férias, as emoções só reapareceram quando a Câmara retomou suas atividades, com um movimento de surpresa do Presidente da Casa: constituir um Grupo de Trabalho, não previsto no seu Regimento Interno, que preparasse um substitutivo englobando o projeto de Iniciativa Popular e outros dez que já tramitavam na Câmara sobre o mesmo tema – o primeiro deles dos idos de 1993. O Grupo de Trabalho começou bem, convocando a sociedade para uma Audiência Pública. Mas com o assunto já bem mais presente na mídia, seus comentaristas começaram a levantar suspeitas: nossos espertos parlamentares estavam fazendo uma hábil manobra para desvirtuar totalmente a proposta que tinha chegado da sociedade, e apresentar um substitutivo que descaracterizaria totalmente seu propósito moralizante.
O novo suspense durou um mês, o tempo estabelecido para que o Grupo de Trabalho realizasse sua tarefa. Ao final, para surpresa geral, e apesar de fortes resistências dentro do próprio Grupo, a emenda saiu melhor que o soneto: foi possível aproveitar muito do que se propunha nos dez projetos -e até do que se levantou na Audiência Pública- e o projeto original terminou por ser aprimorado, resolvendo inclusive o obstáculo das condenações somente em primeira instância: seriam consideradas aquelas decididas por um colégio de juízes, o que equivaleria a uma primeira ou a uma segunda instância, segundo o caso. O MCCE, que acompanhava de perto as discussões, considerou que o substitutivo correspondia ao que se buscava, para alívio geral.
O ambiente começou a ficar de novo quente quando o substitutivo foi levado ao plenário. Um pedido de urgência urgentíssima para sua votação não conseguiu a adesão dos dois maiores partidos da Casa e tudo parecia que ia desandar, pelos prazos exigidos pela tramitação então necessária. Chegou-se, no entanto, ao acordo de mandá-lo para a Comissão de Constituição e Justiça, dando-lhe um mês para examiná-lo; terminado esse prazo, seria dada a urgência urgentíssima ao eventual novo substitutivo discutido na Comissão, quer ela o tivesse aprovado ou não.
Foi a fase de maior tensão da novela. A CCJ naturalmente abordaria a própria constitucionalidade do projeto, e o relator que fosse designado poderia enterrá-lo de vez. Esse tema já havia provocado muita discussão e até posicionamentos indiretos de Ministros do STF, que mais cedo ou mais tarde teriam que dar seu veredicto sobre isso.
De novo para surpresa geral, o relator designado, do partido do governo, conseguiu elaborar, com a aprovação do MCCE, um projeto ainda melhor, contendo detalhes que eliminavam as resistências que persistiam. Estas já se organizavam para que o projeto não saísse da CCJ. Mas o gongo tinha soado e ele teve que ser mandado ao Plenário da Câmara sem a aprovação dessa Comissão. Para alivio geral de todos os espectadores da novela, os dois grandes partidos cumpriram seu compromisso de lhe dar urgência urgentíssima.
Daí para a frente, a tramitação foi rápida: o assunto já estava bem debatido, as posições estavam definidas, e tanto na Câmara como depois no Senado contou-se com o apoio de uma maioria maior do que a exigida para uma Lei Complementar, como era o caso dessa Lei. O texto do substitutivo vindo da CCJ foi totalmente aprovado e rejeitados todos os destaques apresentados, com emendas modificativas. Como se dizia na Câmara que era mais fácil uma vaca voar do que esse projeto ser aprovado, oito meses depois dele ter entrado no Congresso a vaca visivelmente voou.
No Senado, no entanto, um pequeno susto chamou a atenção de todos os que vinham acompanhando a novela, tornando-os de novo apreensivos: a aprovação de uma pequena emenda, da qual se poderia dizer que não era anódina e tinha endereço certo, obrigaria o projeto a voltar para a Câmara, se fosse considerada de mérito. Mas como foi interpretada como emenda de redação, tudo terminou em paz, para que se pudesse entrar no segundo capitulo da novela, em que um novo e importante ator entrou no palco: o Tribunal Superior Eleitoral.
Seu Presidente, recém empossado, criou um enorme suspense levantando a questão fundamental: seria ele constitucional ou não? Mas, em sucessivos julgamentos de casos concretos, o TSE resolveu essa e outras duas questões, com um quorum de 5 a 2, o que não deixava margem a dúvidas: constitucional, sim; compreendendo condenações anteriores à lei, sim; valendo já na eleição de 2010, sim.
O capitulo final da novela é o que estamos vivendo agora: os condenados pelo TSE apelaram ao STF, como lhes faculta a Lei. A primeira parte desse capítulo foi bastante emocionante, com cada Ministro tomando sua posição, um após outro, em dois longos julgamentos acompanhados pela TV em todo o Brasil, e manifestações do lado de fora do prédio do Supremo. Muita gente ficou estupefata com comportamentos distantes do que se esperaria de calmos Magistrados. Tivemos direito até a cenas explícitas de partidarização. E o empate de 5 a 5 nos dois julgamentos obrigou o futuro surgimento, no enredo, de um personagem ainda desconhecido: o 11º Ministro, que está por ser designado pelo Presidente da República.
O suspense agora criado é ainda maior: nesse capitulo poderá ser jogado por terra todo esse imenso e custoso esforço feito pela sociedade brasileira e pelos setores do Congresso Nacional que o honraram. Se o 11º Ministro ou Ministra se colocar ao lado do pelotão dos cinco contrários ao projeto, ele sozinho -ou ela sozinha- terá tido mais poder que o próprio Presidente da República, que promulgou a Lei. Depois desse voto de desempate o previsível é que os prejudicados pelas decisões anteriores pedirão imediatamente a anulação das mesmas. E o sonho de moralização política que essa Lei carrega consigo virará fumaça e se desfará no ar.
Se batatas quentes existem, esta que caiu nas mãos de Lula é muito mais do que simplesmente quente. A última sessão do STF mostrou que não é assim tão neutro nomear um Ministro do Supremo. E o modo como a novela pode terminar faz com que até se possa pensar em uma nova proposta para a Reforma Política: introduzir a possibilidade de “impeachment” dos Ministros dessa Corte, pelo enorme poder que têm e que pode ser desvirtuado em prejuízo de toda a sociedade.
Não nos resta outra alternativa senão a de “acordar” Lula -embora seja mais do que provável que ele já esteja ciente disso- para o significado da indicação que deve fazer. Na sociedade brasileira há muita gente que lhe dá a possibilidade de escolher um 11º Ministro ou Ministra que não venha a carregar, o resto de sua vida, a responsabilidade de um imenso crime de “lesa-esperança”, o que vem a ser o mesmo que “lesa-futuro”. Sendo que o mínimo que se poderá dizer é que, se não o fizer, terá perdido uma oportunidade de fechar luminosamente seu mandato.
Radoico Guimarães
nov 16, 2010 @ 21:20:05
Excelente artigo, conta de modo interessante e divertido a história do Ficha Limpa e a importância desse ffamigerado 11o. Ministro! Parabéns!