Sanfona Salarial
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
Um olhar despretensioso ou um giro pelos campos e cidades do território nacional faz-nos tropeçar a cada momento com o Brasil, terra de contrastes, livro de Roger Bastide. Nos últimos meses, foram os debates em torno do Salário Mínimo que nos fizeram ressuscitar as observações de não poucos estudiosos do país. Além de Bastide, poderíamos trazer à tona, por exemplo, toda a obra de Josué de Castro, especialmente a Geografia da fome. No caso do trabalho assalariado, não é novidade para ninguém o fato de que a chamada “sanfona salarial” no Brasil continua sendo uma das mais desiguais. Dois aspectos comprovam isso de forma estridente. Em primeiro lugar, os números são escandalosamente assimétricos. Não vou me deter em cálculos matemáticos, mas cabe uma pergunta: quantos salários mínimos, por mês, ganha um representante dos mais altos escalões do governo, seja ele político, juiz ou ministro, ou oficial das forças armadas?
Mas pergunta pode ser feita de maneira invertida: quantos anos são necessários para que um trabalhador ou trabalhadora, cidadãos brasileiros comuns, acumulem os ganhos de um funcionário público ou um oficial do mais alto grau? Ambas as respostas apontam para desequilíbrios não só injustos, mas acentuadamente ostensivos, vergonhosos e até revoltantes. Em termos de salário, a distância entre o teto e o piso tem sido historicamente quilométrica, com tendência a aumentar ainda mais. Há um fosso entre, de um lado, os mais bem remunerados, que perpetuam os “privilégios e benesses” estruturais arraigados na sociedade brasileira; e, de outro lado, os representantes que se encontram na base da pirâmide salarial, também estes perpetuando os “favores, esmolas ou migalhas” que a Casa Grande se digna atirar para a Senzala.
Mas há um segundo aspecto que revela a desigualdade da sanfona salarial. Enquanto a discussão sobre o salário mínimo se arrasta por meses e meses, envolvendo o legislativo e o executivo e, em caso de apelação, até o judiciário, o percentual do aumento estratosférico relativo aos deputados e senadores é decidido em apenas uma rápida sessão. Decisão, em geral, marcada por um consenso inusitado e orquestrada na calada da noite. Pior ainda é o chamado “efeito cascata” que acaba beneficiando os parlamentares de todo o país, de todas as instâncias de todos os níveis, federal, estadual e municipal. De uma canetada ou de um toque no mecanismo de votação do Congresso Nacional, os ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. E como dinheiro gera poder e poder gera mais dinheiro, está relançada a espiral do desequilíbrio socioeconômico.
O jogo de contrates entre o maior e o menor salário pago por todo o país poderia continuar. Um jogo divertido, se não fosse trágico! Por exemplo, que bagatela compraria hoje um deputado ou senador, um ministro ou general, um juiz ou desembargador de alto grau com um salário mínimo de R$ 545,00? Uma gravata de grife, um calçado de luxo, um litro de uísque, algumas camisas, uma viagem “às bases eleitorais”, uma janta para os amigos (não muitos!)?… E inversamente, que fortuna seria para um trabalhador da construção civil ou um assalariado rural, por exemplo, a sangria que custa aos cofres públicos os rendimentos recebidos mensalmente por uma dessas grandes figuras? Que luxos esse trabalhador poderia permitir-se! Em outras palavras, se os recebimentos da classe trabalhadora representam mero “troco” para os habitantes do andar de cima, os recebimentos destes significam para o povo uma verdadeira loteria, ou seja, um sonho sempre distante e inacessível.
De um lado, salários; de outro, honorários, proventos ou rendimentos! A própria terminologia, por si só, põe a nu a desigualdade. O mais grave é que o salário, normalmente, vem nu e seco, sem qualquer condimento. Uma merreca ou mixaria, como diz a linguagem popular. Já os rendimentos quase sempre são ricamente temperados por uma série de auxílios: moradia, combustível, passagens, paletó… Com direito a outra série de funcionários de menor escalão para os mais diversos serviços. Faz lembrar as cortes medievais, onde os duques, condes ou barões, além de suas senhoras, caminhavam rodeados por um séqüito de servidores.
Tudo isso para concluir que, ao lado de uma “política de salário mínimo”, faz-se necessário discutir uma “política de salário máximo”. Mínimo e máximo que deveriam ter uma distância limite entre si, sem exageros nem escândalos. Aqui deveriam nos orientar os princípios da ética na política do bem comum, do bom senso e da moral. Só assim poderíamos, progressivamente, diminuir o abismo cada vez mais fundo entre um e outro andar do edifício social. Vale o mesmo princípio para a propriedade da terra: se falamos de módulo mínimo, dever-se-ia falar igualmente de módulo máximo. É o único caminho para “aplainar os montes e os vales, ou endireitar as veredas tortuosas”, como diriam os profetas do Antigo Testamento.
Por fim, somente desse modo iniciaríamos o combate real ao “apartheid social”, o qual, em termos históricos e estruturais, marca a sociedade brasileira desde seus primórdios coloniais. A luta pela dignidade humana impõe a supressão dessa idéia de duas raças: uma repleta de privilégios, comprados pela riqueza, a renda e o poder, habitando o andar superior; outra, nos porões do andar inferior, sempre à mercê do humor das autoridades de plantão, que tanto podem conceder como suprimir os favores e migalhas de que dispõem. Isto equivale à criação de estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais que possam avançar em direção a oportunidades iguais para todos, criando assim as bases para uma democracia não apenas política, folclórica e de fachada, mas que penetre nos subterrâneos da economia e da distribuição de renda.