São João de Brito
São João de Brito catequizando os Indianos
4 de Fevereiro
Nasceu em Lisboa (Portugal) no dia 1 de Março de 1647, de família nobre. Depois de uma piedosa adolescência, entrou na Companhia de Jesus e, ordenado sacerdote, embarcou para as missões da Índia, onde trabalhou no meio de grandes sofrimentos e perseguições, mas também com grande fruto apostólico. Foi de lá enviado à Europa como Procurador das Missões e de novo partiu para a Índia; no dia 4 de Fevereiro de 1693 alcançou a glória do martírio.
O quotidiano do missionário
Não é fácil imaginar hoje o que era o dia-a-dia de João de Brito; visitando o país tamil podemos ver as mesmas gentes e a mesma paisagem, assim como muitos dos monumentos que ele observou; deslocando-nos pela região podemos sentir a omnipresença do Hinduísmo, tal como João certamente a sentia; notamos também a continuação da lenta infiltração muçulmana, iniciada precisamente no final do século XVII. Mas o país modificou-se: os meios de comunicação desenvolveram-se e o estado de guerra permanente desapareceu; o Cristianismo levado pelos missionários não superou a religião local, mas a tolerância promoveu novos hábitos e novos tipos de convivência. Torna-se, pois, quase impossível recriar todo o antagonismo que rodeou a actividade evangelizadora de João.
Comecemos a nossa análise por este aspecto: os antagonismos que João enfrentou e que começaram muito antes de iniciar a sua acção missionária no Madurai. Com efeito, notamos que João de Brito esteve sempre, de certa forma, contra o mundo: enquanto estava nos territórios portugueses teve que vencer todas as tentativas de o afastar da sua vocação missionária; durante o seu apostolado na Índia meridional enfrentou até à morte os que se incomodavam com a sua actividade. Esta contradição permanente face aos interesses de tão diferentes gentes leva-nos a afirmar que a sua acção só tem lógica à luz da aceitação radical do Evangelho, caso relativamente raro mesmo entre os missionários. Na verdade, mesmo homens extraordinários como Manuel da Nóbrega ou Alexandre Valignano, que se empenharam profundamente na propagação do Evangelho, não deixaram de contribuir para que o Império crescesse lado a lado com a Fé.
Parece-nos, assim, que só podemos compreender João de Brito tendo em conta a perspectiva cristã de que o Reino do Pai não é deste mundo (cf. Jo 18,36). Os actos de João decorriam de um amor infinito pelo próximo (cf. Mt 5,43-48; Jo 13,34-35) que ele queria espalhar entre as populações que desconheciam Jesus Cristo. O quotidiano de João baseava-se, pois, no Evangelho; era aí que ele encontrava a força para cristianizar e para suportar pacientemente (podemos, mesmo dizer amorosamente) todos os obstáculos que se lhe deparavam e todo os sacrifícios por que passava. Este homem vivia feliz por acreditar que a sua actividade levava à salvação de muitos dos seus irmãos e que assim cumpria integralmente a missão a que Deus o destinara. Vivendo no mundo, João vivia para valores que não se confinam na nossa existência terrena.
Embora seguisse o mesmo método de adaptação cultural iniciado pelo missionário-brâmane Roberto de Nobili, Brito distinguiu-se deste por ser muito menos calculista; beneficiando, sem dúvida, do trabalho pioneiro do italiano, já não privilegiou o contacto com certas castas. João vivia para todos os que o quisessem escutar. A sua vivência mística, dando mais atenção ao desafio evangélico do que à especificidade da vida terrena tornava-o ousado e indiferente aos ricos, mas aproximava-o mais das populações. É provável que Albert Nevett tenha razão quando afirma: “Tanto quanto podemos julgar (…), ele foi tão longe nos seus métodos de adaptação quanto era possível, mas não era o seu método que fazia as conversões, mas sim a sua alegria, a sua personalidade amiga, a sua abnegação, a sua evidente santidade.”
As adesões de indianos ao Cristianismo não eram bem vistas pelos seus conterrâneos, sobretudo pelos de castas superiores. Na verdade todo o esforço de adaptação não impedia que a conversão de um indivíduo determinasse o fim de certas práticas hindus. Costumes como a poligamia ou práticas como o sati, ritual em que se queimavam vivas as viúvas junto com os cadáveres dos seus maridos, eram inconciliáveis mesmo com a essência da religião cristã. A pressão das famílias levava a que, por vezes, alguns dos novos baptizados apostatassem e regressassem à sua antiga religião, sinal evidente de que as oposições eram dirigidas não só contra os evangelizadores, mas também contra aqueles que os seguiam.
O prestígio dos pandarás e a sua crescente influência junto das populações provocavam uma natural inveja por parte dos brâmanes. Sempre que em determinado lugar se dava uma calamidade (cheias, epidemias ou secas, por exemplo) e por coincidência um missionário estava no local, logo começavam a circular rumores responsabilizando-o pelo sucedido. Além disso os preconceitos relacionados com as castas tornavam sempre melindrosa a acção dos poucos religiosos que trabalhavam no país tamil.
Todas estas situações, que já haviam dificultado a acção de Nobili e seus companheiros, faziam parte do quotidiano de João de Brito.
Quando chegava junto de uma comunidade o missionário enfrentava um trabalho intenso: recebia centenas de pessoas a quem ouvia a confissão, dava conselhos ou ensinava a doutrina. Rigoroso, João não baptizava muito rapidamente aqueles que lhe pediam o sacramento, pois desejava estar seguro da convicção dos neófitos. O seu corpo não descansava muito, e pouco mais comia que arroz cozido. Sendo responsável por comunidades dispersas João contava com o apoio de um grupo de catequistas; uns substituíam-no na assistência espiritual dos cristãos, outros acompanhavam-no nas suas deambulações. Apesar das condições serem pouco propícias o Cristianismo propagava-se lentamente.
Importa recordar que esta actividade incansável se realizava sob um calor quase sempre tórrido. A este propósito Albert Nevett salienta que “o efeito normal de um calor contínuo e excessivo é deixar uma pessoa dessorada, exausta e sem vontade de fazer nada. Especialmente o trabalho intelectual torna-se muito dificultoso Nos meses de Verão o calor é como uma presença física, a fazer pressão e a cercar por todos os lados, a perseguir tudo, sem lhe podermos escapar. (…) Hoje em dia, se exceptuarmos os mais pobres dos pobres, ninguém faz viagens na Índia nos meses mais quentes, contudo João fazia muitas viagens dessas, ao fim das quais, em vez de tomar um banho refrescante e fruir de um descanso prolongado, tinha que receber e ouvir os que o procuravam, os que não o largavam senão alta noite.”
Outro facto que condicionava a acção dos missionários na região era a instabilidade política; as guerras sucediam-se e geravam uma conflituosidade endémica que dificultava as viagens e afectava a vida das comunidades cristãs que iam florescendo aqui e ali. Em 9 de Maio de 1684 João descrevia a situação da seguinte forma: “(…) porque todo o reino dividido contra si mesmo, será destruído, este reino do Maduré está agora completamente arruinado. Por toda a parte testemunhamos degradação, tirania e traição; por uma coisa de nada as pessoas atiram-se à pancada umas nas outras; punição para o vício e prémio para a virtude não existem; ou, para falar com clareza, não há virtude que mereça prémio”. Todos estes condicionalismos contribuíam, provavelmente, para que a missão do Madurai contasse sempre com poucos efectivos.
As dificuldades não se confinavam contudo, ao território onde João evangelizava – na costa do Malabar o seu Provincial, o padre Gaspar Afonso Alvares (1680-1684) não estava satisfeito com a sua actividade. Se aos hindus incomodava a propagação do Cristianismo, a este religioso preocupava o estilo da missionação de João de Brito, o mais radical dos pandarás; Gaspar Afonso desconfiava das suas relações com os indivíduos de castas baixas, e, sobretudo, da ausência de uma propaganda pró-portuguesa no seu discurso. Tal como sucedera com Nobili, também Brito foi forçado a deixar a missão para ir justificar os seus métodos perante o superior hierárquico, o que sucedeu no ano de 1682. O Provincial tentou retê-lo, nomeando-o reitor do colégio de Ambalacata, mas, fiel à sua vocação, João de Brito conseguiu ultrapassar mais este momento difícil e ao fim de seis meses já estava de novo no Madurai. Num dos seus escritos desse ano João refere de uma forma clara as enormes dificuldades com que se debatia quotidianamente:
“Tal é a minha relação para o ano de 1682. Tudo se resume nisto: não temos suporte humano em que nos possamos apoiar, opõem-se-nos reis e príncipes, os poderosos e letrados fazem quanto podem para nos expulsar; e mesmo assim, graças a uma protecção especial de Deus Nosso Senhor, que nos mantém nesta terra, nós conseguimos difundir a Sua Santa Religião.”
Nesta época a sua actividade deparava cada vez com mais problemas, facto a que não era alheio o aumento da anarquia politica que se vivia na região. Em Setembro de 1683 a sua prisão pelo governador de Tanjore esteve eminente. João não fugiu, para que a sua fraqueza não fosse um motivo de desdém para com a sua religião, mas afinal não foi preso e ao passar o Natal nessa mesma região baptizou 1003 pessoas.
Em 1684 a situação tornou-se mais difícil. Primeiro ele próprio foi preso com um grupo de catequistas na aldeia de Perunkundi, onde acabavam de converter algumas dezenas de indivíduos. Foram espancados e ameaçados de morte, mas acabaram por ser soltos. Pouco depois numa outra povoação, um jovem de casta superior que se convertera fora preso por se recusar a deixar o Cristianismo; foi condenado à morte, mas a sentença não foi confirmada pelo governador da província e o jovem acabou por ser libertado. Estes dois casos bem sucedidos despertaram grande entusiasmo entre os cristãos, que passaram a afrontar os costumes hindus, o que teve como consequência quase imediata a sua perseguição por todo o reino de Tanjor. Mas ainda desta vez os cristãos foram libertados e autorizados a manter o seu culto. João acompanhou estas movimentações de fora do Reino; quisera sofrer com os seus convertidos aquelas provações, mas estes tinham-no conseguido manter longe das convulsões, lembrando-lhe que o rebanho podia perder algumas ovelhas, mas não podia ficar sem pastor.
Em 1685 Brito foi nomeado Superior da missão do Madurai; o seu trabalhou e os seus métodos eram, assim, reconhecidos pelos restantes membros da Companhia.
No Verão desse ano ele decidiu entrar no Maravá, território governado pelo setupati, o principal vassalo do naiaque de Madurai. Os missionários não entravam no Maravá desde a perseguição de 1665, embora se mantivessem aí algumas pequenas comunidades cristãs cujos membros saíam da província para receberem os sacramentos. João iria sofrer então novos e mais duros tormentos.
A prisão
“A 5 de maio de 1685, na força do calor do Verão, Brito atravessou a fronteira e abrigou-se numa floresta de acácias. Permaneceu aí um mês com tão grande sucesso no trabalho das conversões e administração de sacramentos, que se animou a penetrar mais para o interior, para Velanculam. Aqui teve ainda maiores sucessos, pois a 17 de Julho, já tinha feito 2070 baptismos”.
Todavia João não conseguiu permanecer oculto das autoridades locais e estas perseguiram-no. Quando se deu a sua prisão estava acompanhado de seis catequistas; os sete foram de imediato espancados – os oficiais hindus pretendiam que eles invocassem o deus Xiva, renunciando, assim, publicamente ao Deus que anunciavam. Perante a resistência daqueles homens começaram as torturas; primeiro foi a da água. “Esta consistia em atar a vítima, levantá-la e fazê-la de novo submergir na água com um homem às costas, sendo depois a vítima retirada para ser interrogada. Se ela não abjurasse era de novo mergulhada”. Um dos companheiros de Brito não resistiu e invocou a divindade hindu; foi libertado de imediato e partiu sem mais problemas. Todos os outros resistiram e os tormentos prosseguiram.
“Enquanto estavam nesta prisão, João enviava mensagens de encorajamento por palavra oral ou escrita em folhas de palmeira, para fortalecer e consolar os cristãos, que estavam aterrados por a perseguição estar prestes a rebentar.”
Durante mais de um mês seguiram-se outras torturas e mais espancamentos, sem que os seis aceitassem as exigências dos oficiais hindus. Foram então condenados à morte, mas faltava a confirmação do setupati. Foram, entretanto, deitados “numa rocha de laterite. Este tipo de rocha tinha bicos muito aguçados, quase como grosseiras puas a apontar para cima da superfície bastante plana. Depois de terem colocado as vítimas sobre esta rocha saltavam por cima delas uns tantos homens. Aumentavam a tortura o calor que se tornava muito intenso por a rocha estar exposta ao ardente Sol de Junho”.
Não veja o leitor nesta descrição dos maus tratos a que João de Brito e seus companheiros foram sujeitos, um juízo moralista condenatório da violência das autoridades hindus, sobretudo porque não esquecemos que na mesma época os cristãos exerciam crueldades semelhantes uns contra os outros, e também em nome da religião. Além disso ao historiador compete interpretar e não julgar os factos do passado; interessa-nos, assim, salientar a brutalidade a que estes homens foram submetidos apenas para realçar o radicalismo da vocação de João, que apesar de tudo isto nunca vacilou no seu desejo de evangelizar os indianos. Note-se ainda que também podemos atestar a eficiência do seu trabalho apostólico: uma simples palavra teria libertado os seus companheiros daqueles tormentos, mas eles, firmes na Fé, tudo suportaram na companhia do mestre sem renegar a religião a que tinham aderido desinteressadamente.
Súbitas alterações políticas atrasaram a execução e depois o setupati anulou a sentença e resolveu entrevistar João de Brito. O missionário pôde, assim, discursar sobre o Cristianismo perante a corte; impressionou o governante, mas não conseguiu que este o autorizasse a pregar no seu território. João e seus companheiros foram expulsos e advertidos de que seriam severamente punidos se voltassem a entrar no Maravá.
Foi então que João de Brito recebeu uma mensagem do seu Provincial, chamando-o à sua presença. O missionário ainda ignorava que o seu trabalho na Índia iria sofrer uma interrupção de três anos.
O último obstáculo
As notícias da prisão, tormentos e posterior libertação de João correram céleres pela Índia e também, não demoraram a chegar a Portugal.
Aparentemente o motivo que levou o Provincial Manuel Rodrigues (1684-1687) a chamar João de Brito foi o simples desejo de proporcionar uns momentos de repouso ao missionário. Mas depois Rodrigues resolveu enviá-lo à Europa como procurador; atribuía-lhe, assim, a responsabilidade de ir a Roma para dar conta ao Padre Geral da situação da Província do Malabar.
Embora contrariado João teve que obedecer, e partiu de Goa no final de 1686. Após uma viagem atribulada, com uma escala forçada no Brasil, a armada chegou a Lisboa a 8 de Setembro de 1687.
Quando desembarcou na capital já corria de boca em boca o relato dos suplícios que ele suportara no Maravá. Era, pois, uma figura célebre – o herói que enfrentara o gentio, sofrera em nome de Cristo e nem havia cedido nem morrido. Muitos dos que o saudavam pensavam, certamente, que aquele homem já cumprira a sua missão e tinha agora direito a uma vida mais tranquila; um dos que assim conjecturavam era o próprio monarca. Na corte João foi recebido com entusiasmo; os ministros do Reino e outros altos dignitários eram, em muitos casos, os seus antigos companheiros de brincadeiras, quando todos eram pagens do infante D. Pedro, agora sentado no trono.
João deslocou-se a várias localidades, nomeadamente a Santarém, Coimbra, Porto, Braga, Évora, Monforte e Portalegre. Em todas falou sobre a missão do Madurai; nessas conferências envergava as suas vestes de pandará. Entretanto, no seu dia-a-dia, mantinha muitos dos hábitos que faziam parte do seu quotidiano na Índia, sobretudo os respeitantes à alimentação. Sabe-se também que enquanto esteve em Portugal nunca dormiu numa cama, continuando a deitar-se no chão sobre uma esteira.
João conseguiu então atrair pessoas e fundos para a sua missão. Na corte levou o Rei a aumentar a renda que enviava anualmente para a missão do Madurai e recebeu também diversos donativos. Não pôde, contudo, completar as tarefas que o haviam trazido à Europa, pois D. Pedro II proibiu-o de se deslocar a Roma. O rei mantinha então uma disputa com o Papado devido à interferência de delegados da Propaganda Fidei em zonas do Padroado; a Santa Sé pretendia ainda que ele dispensasse os missionários estrangeiros, que iam trabalhar nas missões do Padroado, do habitual juramento de fidelidade à Coroa portuguesa.
No início de 1689 João já tinha resolvido todos os assuntos de que viera incumbido, mesmo sem se deslocar a Roma; logrou conseguir também que o monarca dispensasse os missionários estrangeiros do juramento de fidelidade. Só não lhe foi possível partir de imediato para a Índia porque foi expressamente proibido pelo Rei.
De facto, D. Pedro II não estava nada interessado na sua partida; fascinado pela personalidade do amigo de infância, queria-o junto de si a educar o herdeiro e a aconselhá-lo sobre os assuntos relativos ao Estado da Índia. João, desesperado, procurava por todas as formas conseguir voltar à sua missão, e era acusado ao mesmo tempo pelo Padre Geral de não querer regressar ao seu trabalho apostólico. É fácil de adivinhar a ansiedade que invadiria então o seu espírito.
De Março de 1689 a Abril de 1690, João permaneceu firme na sua vontade, não cedendo a nenhuma das propostas de D. Pedro. Finalmente, quando este lhe disse que aceitava a sua partida desde que regressasse ao fim de dois anos, João concordou; estava, no entanto, firmemente decidido a jamais regressar ao Reino.
Quando partiu pôde levar consigo um grupo de missionários já destinados a trabalhar na Índia meridional; preparara-os ao longo do último ano, falando-lhes sobre o país que os aguardava, explicando-lhes a religião hindu e transmitindo-lhes a sua experiência de doze anos de missão.
Chegado o momento da partida sucederia um último episódio rocambolesco, que nos serve hoje para melhor compreendermos a determinação que sempre animou João de Brito.
Depois de um adiamento devido a uma tempestade, a armada de 1690 partiu a 8 de Abril. Um tiro de canhão avisou todos os que iam partir de que chegara a hora de embarcar. João dirigiu-se de imediato para o cais, mas no caminho encontrou o Conde de Marialva, que lhe pediu insistentemente para que se fosse despedir novamente do Rei. Contrariado o jesuíta acedeu; D. Pedro e a rainha retardaram-lhe sucessivamente a partida até que ressoou novo tiro de canhão – era o sinal de que a armada acabava de partir. João deixou rapidamente a companhia do monarca e correu para o cais; os navios já vogavam em direcção ao Atlântico; o jesuíta viu então um pequeno navio à vela, cujos tripulantes se dispuseram a levá-lo até à armada; mas a embarcação era menos veloz que as grandes naus e estas continuavam a distanciar-se; em pleno rio João conseguiu mudar para outro navio mais rápido e este pôde alcançar as naus da Índia. Foi desta forma algo caricata que João de Brito deixou definitivamente Portugal.
É curioso notar que se da primeira vez a mãe lutou arduamente contra a partida de João, agora nada fez nesse sentido e foi o monarca que tudo tentou. Em 1673 era a família que reagia negativamente ao afastamento de um ente querido; em 1690, porém, já se habituara à situação e dava-se por feliz por ter tido a oportunidade de o poder rever. Desta vez era a Coroa que não queria perder o conselheiro e educador, e que gostaria de aumentar o seu prestígio tendo junto de si o herói do Maravá. Nenhuma destas razões conseguiu vergar a vocação de João de Brito; na sua vida esta derradeira passagem por Portugal foi como que o último grande obstáculo que teve de vencer para concretizar o objectivo da sua vida – morrer na Índia anunciando o Evangelho.
Sabemos que nesta altura D. Pedro II tentou recorrer aos serviços de João de Brito para obter dois indianos especializados na cultura da pimenta e da canela, que pudessem ser enviados para o Brasil. Amputado dos portos orientais exportadores de especiarias, e ainda sem o ouro brasileiro em abundância, o Império Português procurava retomar o comércio das especiarias a partir da sua colónia americana. Embora a correspondência do Rei para o vice-rei da Índia nos revele que D. Pedro pedira a João de Brito que lhe localizasse as pessoas capazes de promover a transplantação das plantas asiáticas, não possuímos referências que nos mostrem o empenho do missionário nesta matéria. Com efeito, assim que chegou a Goa João dirigiu-se rapidamente para a sua missão.
A busca do martírio
João chegou a Goa a 2 de Novembro de 1690; em Fevereiro do ano seguinte passava por Ambalacata; em Abril já estava no país tamil.
Todos os testemunhos dos que contactaram com ele neste período e nos meses imediatos referem que o pensamento de João estava sempre virado para o Maravá. Embora desejasse voltar rapidamente ao território de onde fora expulso e ameaçado de morte, João aceitou o pedido do novo Provincial, o seu velho amigo André Freire (1687-1691), para que visitasse as várias comunidades da missão do Madurai. Durante cerca de um ano Brito percorreu o país que tão bem conhecia, pôde, assim, rever os amigos antes de partir para a sua derradeira missão.
De novo entre os Indianos, o missionário reencontrara a felicidade, como ele próprio reconhecia numa carta de 20 de Abril de 1692. “Não há perseguição que me possa roubar a alegria que sinto em pregar, mais uma vez, o Evangelho aos gentios. Nos últimos quatro meses tenho estado escondido numa floresta, vivendo debaixo de uma árvore com tigres e cobras. Até agora ainda não fui atacado.”
Já estava então decidido a penetrar de novo no Maravá; procurava, assim, redimir-se da sua “falha” anterior, ao ter obedecido à ordem do setupati para abandonar o território; esperava, ao mesmo tempo, alcançar a graça de se identificar definitivamente com o seu Salvador através do martírio.
Andando escondido conseguiu trabalhar durante vários meses no território do Maravá; milhares de pessoas acorriam para receber os sacramentos e as conversões alastraram às castas superiores. o religioso tornava-se, assim, cada vez mais incómodo. Enquanto prosseguia a sua actividade, João ainda alimentava a esperança de conseguir uma audiência perante Raghunata Devar, o setupati.
Todavia, antes de o conseguir deu-se a conversão de um príncipe que até então se havia oposto violentamente à propagação do Cristianismo. Tratava-se de um vassalo directo de Reghunata Devar; o seu baptismo representava uma provocação demasiado flagrante para com o governante, mas João administrou-lhe o sacramento a 6 de Janeiro de 1693. Agora cristão, o príncipe Tadiya Thevan repudiou três das suas quatro mulheres; uma delas era sobrinha do setupati. Dois dias depois deu-se a prisão do jesuíta; os seus amigos mais fiéis arquitectaram alguns planos de fuga, mas João de Brito recusou-os. Ele “estava num dilema, em que muitos mártires futuros se haviam de encontrar: se fogem, são cobardes; se ficam estão a arriscar temerariamente a própria vida, Brito ficou, porque estava convencido no Espírito que devia ficar; e, humanamente falando, a sua fuga teria sido um escândalo para os cristãos que ele deixava a enfrentar sozinhos a perseguição”.
O seu julgamento decorreu a 28 de Janeiro, mas foi um mero pró-forma e a condenação à morte foi anunciada para júbilo de João. Transferiram-no então entre inúmeros maus-tratos para Oriur, onde recebeu alegremente o martírio por degolamento a 4 de Fevereiro de 1693. Até ao último suspiro João de Brito foi sempre um exemplo de Fé cristã; ao caminhar tranquilamente para o local da execução ele continuava a viver o Evangelho, e ao enfrentar o
carrasco estava certo de que “se alguém guardar a Minha palavra nunca mais verá a morte” (Jo 8,51).
São João de Brito, prisioneiro
Dia de Santo Aleixo, vindo de viagem me prendeu o Padrane de Maravá (isto é, o principal do governo, que nós dizemos privado; em latim secundus a Rege) que se chama Cumara Pilei. Toniou-nos tudo. Quis que disséssemos: Xivá, Xivá (é o nome de um dos principais ídolos que os gentios por ali adoram), que dito esse nome nos largaria, dando-nos tudo; que nos honraria e daria licença para pregar a lei de Deus e me daria uma herdade (ou aldeia, como eles chamam e um cavalo. Respondemos (eu e seis cristãos que foram presos comigo) que não havíamos de dizer tal nome. Eu fui então esbofeteado, atado com dois grilhões e amarrado ao cepo dos párias na rua, aquela noite e o dia seguinte até às duas horas da tarde. Os cristãos, principalmente Xeluem, catequista, e Xurapem, foram espancados tão cruelmente que lhes arrancaram a pele das costas e do peito e todos foram presos ao cepo comigo.
Ao outro dia foram submetidos a tratos de água e receberam muitas pancadas e feridas. Retrocedeu ali um Cule [homem de carreto que parece levava algumas virtualhas do Padre] e era um dos seis; e lago o honraram e o deixaram livre; e nós fomos levados em companhia do Padrane e seu exército à fortaleza de Calincail com notável crueldade. Ali deram cruéis tormentos a Xurapem que se tem havido como glorioso mártir. Nós fomos condenados a ser atenazados: veio fogo, tenazes e os mais aparelhos, mas não chegou a execução por se fazer noite.
A mim lançaram-me dois grilhões e aos outros um só: e fomos metidos em um rigoroso cárcere, onde estivemos até 28 deste e fomos trazidos e amarrados com cordas a este Paganei, onde chegámos mortos de fome e sede e abrasados do caminho; e em chegando nos intimaram sentença de morte se não disséssemos Xivá, Xivá. E como respondêssemos que não havíamos de dizer tal, levámos muitos coices, bofetadas, açoites, pancadas e tratos; e fomos lançados em grilhões; e o Padrane se partiu a confirmar a sentença com o Maravá; e cada hoje esperamos pela resposta, e estamos muito contentes e conformes com a divina vontade, que nos fez tanta mercê como é dar a vida por sua santa lei. Vossa Reverência [Padre Provincial] me lance sua santa bênção e peça aos Padres todos me recomendem muito a Deus, para que me dê a última graça; que eu me lembrarei de todos no Céu.