Saúde brasileira e Compaixão evangélica

“Jesus percorria todas as cidades e povoados,

ensinando em suas sinagogas, pregando a Boa Nova do Evangelho,

e curando todo tipo de doença e enfermidade. Vendo as multidões,

Jesus teve compaixão, porque estavam cansadas e abatidas,

como ovelhas que não têm pastor” (Mt 9, 35-36).

 

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

Dor sem remédio, doença sem cura, enfermidade crônica – eis como aparece o sistema de saúde brasileiro no dia-a-dia da população. As imagens recentes, especialmente nas capitais de Salvador e Rio de Janeiro, já se tornaram “pão nosso de cada dia”: fila interminável para marcar consulta, muitas vezes somente para o próximo ano; idosos, enfermos, pessoas em cadeira de rodas,  gente visivelmente debilitada, chegando a dormir na fila para não perder o lugar; alguns morrendo antes de serem atendidos; senhas que não alcançam a todos, deixando boa parte à margem… E coisas desse tipo! Chagas vivas de um sistema de saúde enfermiço.

Apesar de comuns e amplamente divulgadas pelos meios de comunicação social, tais cenas chocam e impressionam duplamente a opinião pública: de um lado, rostos e membros mutilados por um sofrimento acumulado, expostos à luz do sol e da mídia, feridas que parecem jamais cicatrizar; de outro lado, o descaso dos funcionários, atendentes e médicos, mas de modo particular  das autoridades de primeiro escalão do sistema de saúde, em nível municipal, estadual e nacional.

Dos postos e ambulatórios de atendimento assistencial e imediato ao Ministério da Saúde, passando por hospitais, laboratórios e farmácias, planos de saúde, o que se vê é uma rede cheia de nós, de curtos-circuitos, onde sobram os males e faltam soluções, sobram as dores e faltam remédios. Um verdadeiro labirinto sem saída, em que emperram, se engavetam ou são adiadas exames, consultas, cirurgias. Em nenhum outro setor das políticas públicas é tão evidente e flagrante o  jogo de empurra-empurra.

Das casas e ruas, dos pontos de ônibus e feiras, dos botecos e supermercados, dos campos e praças – levanta-se uma única pergunta: o que está faltando? Recursos públicos? Certamente não, pois eles aparecem com extrema abundância em outras áreas, especialmente nos incentivos fiscais à indústria e ao comércio, ao agronegócio e às grande obras do PAC, como se o crescimento a qualquer preço fosse a “panaceia para todos os males”. Sem falar dos gastos com a máquina administrativa dos três poderes, executivo, legislativo e judiciário, e deixando de lado os desvios com a corrupção.

Segue de pé a pergunta: o que está faltando? Orçamento para a saúde pública? Também não, porque ele existe, mas muitas vezes é contingenciado (como o são os gastos com educação, transporte, segurança, infra-estrutura, calamidades, etc.), em vistas de outras “urgências governamentais”.  O que importa é manter a porcentagem do PIB em permanente ascensão, satisfazendo, por exemplo, o transporte privado, o consumo da classe média ou os lucros estratosféricos do sistema financeiro (leia-se Bradesco, Itaú, Santander…).  Deixemos de lado, uma vez mais, os gastos com a Copa do Mundo e as Olimpíadas, os quais, por si só, exigiriam um capítulo à parte.

A pergunta é teimosa como a própria dor: o que está faltando? Talvez uma concepção diferente da saúde pública (para não falar de outras áreas). O que prevalece em geral é a visão mercantilista. Os serviços se convertem em oportunidades de acúmulo de capital. Os direitos adquiridos se reconvertem em mercadorias a ser negociada na férrea lei da oferta  procura. No contexto do mercado total, tudo se transforma em bens de troca, incluindo a uma consulta urgente, sob risco de morte; os alimentos da cesta básica, em meio à miséria e fome; o remédio indispensável e ininterrupto, que subordina a própria sobrevivência; o deslocamento para o trabalho, longo, caro e cansativo; o sexo, o prazer e o lazer;  e até os bens relacionados ao sagrado.

Caminhando para a conclusão, vale retomar as palavras evangélicas da epígrafe. Dor, fome e solidão constituem três irmãs siamesas: não podem esperar! É isso o que mostra a prática de Jesus. Sua caravana nunca atropela quem sofre, nunca abandona e necessitados. Sempre se detém diante o grito que vem dos pobres (é o caso dos cegos de nascença, da mulher que sofria de fluxo de sangue e de tantos outros). Grito tanto mais eloquente quanto mais silencioso e silenciado. Os sem vez e sem voz encontram profunda repercussão no coração de Jesus. Daí sua aguda atenção aos mudos e mutilados da história, mutilados no corpo, na alma, nos direitos – “multidões cansadas e abatidas, como ovelhas sem pastor”.

No ponto final, uma pequena luz à insistente pergunta: o que está faltando? Quem sabe uma prática política fundamentada na ética e nos valores acumulados pela humanidade ao longo dos séculos. Nesta perspectiva, o que está em jogo não são os privilégios e o patrimônio das classes poderosas e dominantes, e sim o bem comum da população como um todo. Creio não ser inoportuno o critério da “compaixão evangélica”  como barômetro das decisões a serem tomadas diante dos setores de baixa renda, evitando sempre o fundamentalismo e o obscurantismo religioso, que tanto mal semearam nas trilhas da história.

No fundo, nada de novo, apenas o regime democrático levado a sério, não somente no espetáculo das eleições e campanhas, urnas e votos, mas sobretudo da partilha justa e equitativa, fraterna e solidária da riqueza produzida por toda a nação. Mais do que “crescer para depois dividir o bolo” (como dizia Delfim Neto em anos passados), o que se necessita é abrir oportunidades a todos, numa economia nova em termos sociais, políticos, culturais e ecológicos. Boas iniciativas têm sido criadas pelos últimos governos, mas esse enfoque político e econômico requer novos canais, instrumentos e mecanismos de participação popular, no sentido de controlar a ação de seus representantes políticos, de decidir sobre as políticas públicas, como também de controlar o orçamento em todos os níveis.

Numa palavra: socializar em termais cada vez mas vastos e eficazes  três questões de fundamental importância para uma economia justa, solidária e sustentável: o que produzir? Como produzir? E para quem produzir?