Sem raiz, sem identidade
“As raízes são galhos que penetram fundo na terra. Os galhos são raízes que se estendem para o alto no ar.” – Tagore
Havia, num certo lugar, um bando de pássaros, que todo ano migrava para outros campos em busca de comida e do calor que lhes aqueceria o corpo e o canto.
Naquele ano, o ritual se repetiu, a exemplo de sempre. Em comunidade, o líder à frente, eles voavam para aquela terra onde encontrariam a felicidade e o gosto pela vida de pássaro, livres por natureza do trabalho de semear, ceifar e acumular – eram “as aves do céu”. De repente, um deles foi ficando propositalmente para trás. Seus olhos haviam sido encantados por luzes de diferentes coloridos e intensidades, naquela noite relativa. Reduziu a velocidade de suas asas que já não se abasteciam do mesmo combustível de antes: o sentido de comunidade. Reduziu a velocidade e colocou o imenso tapete de asfalto em sua mira, transformando-o no seu foco absoluto.
Para estímulo na caminhada, já não contava com o barulho do bater de asas dos companheiros, certeza de que dispunha da força de seu grupo, nem com o canto que os guiava na direção para a qual haviam sido chamados desde a origem.
O pássaro solitário foi sugado por prédios duros, frios e impessoais. Viu-se perdido entre luzes ameaçadoras de carros e ônibus, na sua frenética disputa por mais um metro de chão e de vantagem sobre os demais. Como ração, apenas encontrou restos de alimentos jogados, em estado de decomposição e mal-cheirosos, pelos senhores daquele lugar tão estranho quanto sufocante. Seu canto solitário e frágil foi impiedosamente abafado por milhares de buzinas e pelo atrito de pneus contra o solo.
Ele perdeu o contato com sua raiz, galho sem tronco, sem árvore, sem a seiva da vida. Tentou alçar novo vôo, mas já lhe faltavam forças e direção. Foi atropelado e, aleijado, perambula por ruas e avenidas tentando novamente voar – acredita cegamente que é um avião. A ausência do grupo roubou-lhe completamente a noção de identidade, além de negar-lhe qualquer perspectiva de um futuro feliz.
Rubens Marchioni