Sempre o amor
Maria Clara Bingemer
Com a proximidade do Dia dos Namorados, é irresistível a tentação de falar sobre o amor. Tema tão eterno quanto desgastado; tão desafiante quanto banalizado; tão indispensável quanto tantas vezes sentido como supérfluo.
No entanto, o amor, mais que qualquer outra palavra ou conceito, sempre está de volta. E o que o faz tão fascinante e capaz de atrair nossa atenção é o fato de que sempre nos escapa. Não conseguimos circunscrevê-lo nem tampouco esgotá-lo, cerceá-lo em uma definição qualquer. E isso porque o amor é maior do que nós.
O amor não é algo que possamos produzir, provocar ou instituir. Acontece para além de nós, antes de nós, sem nosso concurso e mesmo apesar de nós. E tudo transforma: nossa maneira de ver o mundo, de perceber as coisas e as pessoas, de conhecer. De qualquer ângulo a partir do qual olhamos uma coisa ou um evento ou uma pessoa, estamos sempre no centro. Tudo é visto e percebido sob o meu ponto de vista.
No entanto, quando o amor acontece em nossa vida, o “eu” não está mais no centro. O centro é o outro, o bem amado ou bem amada. E o centro nunca mais serei eu, mas sempre ele, ou ela. Na verdade, o amor faz com que de repente nos percebamos no lugar de outro, sentindo com e por ele ou ela. É uma experiência que nos faz sentir-nos habitados por uma presença, como dizia Santo Agostinho, “mais íntima a mim do que eu mesmo”.
A tal ponto isto é verdade que, quando ama, o “eu”, ao querer estar consigo, tem que estar onde o outro bem amado está. Está totalmente descentrado. E neste momento não são apenas seus sentidos, ou sua razão que o ajudam. O “eu” se sente totalmente desamparado justamente porque percebe que nem os sentidos nem a razão o ajudam.
Pensar ou sentir sensorialmente não o ajudam mais nem lhe dão segurança sobre si mesmo. Ao invés, para sentir-se vivo, humano, pleno, o “eu” necessita não exercitar sua capacidade de pensar, mas sentir-se pensado por outro. E também querido, amado por outro. A partir do momento em que experimenta essa alteridade que o constitui como pessoa, percebe-se total e radicalmente modificado em sua percepção do mundo inteiro, de si mesmo e da vida em geral.
Até então autônomo (ou seja, dono de si mesmo), o “eu “passa a ser heterônomo (ou seja, perdido a si mesmo, regido e guiado e determinado pelo outro. É então que os parâmetros se rompem: o da igualdade, o da simetria. A lógica da troca, dos direitos e deveres está estilhaçada, pois o amor tem o poder de inaugurar outra lógica: a lógica da graça e da gratuidade. É, em suma, a lógica do dom.
É apenas quando entra nesta lógica que o ser humano aproxima-se do ponto a partir do qual poderá ser digno deste nome. Pois enquanto o que impera é a lógica da troca, do mérito, dos sentidos despertos, ainda não se entrou naquilo que traz o selo da originalidade e que faz a criatura humana imagem e semelhança do Criador.
Pois o que distingue o Criador senão o fato de que amou primeiro? Quem é Deus senão Aquele que decidiu amar sem razão e em primeiro lugar, antes de qualquer sinal do bem amado de que responderia ou corresponderia a seu infinito amor? Deus ama aquilo que ainda não existe. E o amor cria, faz do nada vida, faz existir. Assim também pelo amor o ser humano de certa forma “cria”, traz o outro à existência. A mais insignificante das criaturas é infinitamente valiosa e única aos olhos do amante, que a faz existir como bem amada, querida e desejada.
Entrar nesta lógica de desequilíbrio e gratuidade é uma ousada aventura. Porém é a única coisa que nos faz verdadeiramente humanos. Pois só aí estaremos refletindo, como um espelho, o Amor infinito que nos amou primeiro e que nos fez existir. Porque existimos, podemos amar, desde que consintamos em entrar na lógica inenarrável e fascinante do amor.
O namoro pode ser, portanto, poderoso e fecundo aprendizado para o verdadeiro amor. Se souber resguardar-se da “liquefação“ viscosa que infecta todas as relações hoje em dia, poderá ser um sadio e amplo laboratório para o exercício do dom, da gratuidade, da entrega, do perdão, do serviço e de todas as formas que a humanidade inventou ao longo de sua história.
Pois o maior dom é o próprio amor. E quando este dom acontece, doador e receptor passam a segundo plano. Só fica, resplandecente, o próprio amor que a cada minuto se reinventa e por isso reafirma em alto e bom som que a vida tem a última palavra.