Situação dramática
Manfredo Araújo de Oliveira
O Papa Bento XVI em sua nova encíclica acentua em primeiro lugar o fato de que aquele tipo de desenvolvimento, pensado por Paulo VI, que pretendia indicar um processo que tinha como objetivo fazer sair os povos da fome, da miséria, das doenças endêmicas do analfabetismo, lamentavelmente não se efetivou em virtude do modelo de desenvolvimento implementado nas últimas décadas. Este tem em seu centro e como meta fundamental o lucro que na medida em que se faz objetivo exclusivo arrisca-se a destruir a riqueza e produzir a pobreza. Sem dúvida, diz o Papa, o desenvolvimento possui um aspecto positivo que tirou da miséria milhões de pessoas. No entanto o desenvolvimento econômico continua marcado por anomalias e problemas dramáticos que têm impacto decisivo na situação presente e futura da humanidade e da terra (n.21). Pode-se dizer que o cerne deste modelo se revela no fato de que a riqueza mundial cresce em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades. Nos países ricos, novas categorias sociais empobrecem e nascem novas formas de pobreza. Nas áreas mais pobres do planeta alguns grupos gozam de uma espécie de superdesenvolvimento dissipador e consumista em contraste inadmissível com situações persistentes de miséria desumanizadora. O “escândalo de desproporções revoltantes” de que falou Paulo VI continua presente em nosso mundo globalizado (n.22).
Esta situação dramática mostra com toda clareza que não é suficiente progredir do ponto de vista econômico e tecnológico, mas o desenvolvimento precisa antes de tudo ser verdadeiro e integral, ou seja, estar a serviço da promoção do ser humano e da defesa da terra. Na era da globalização, eliminar a fome tornou-se uma meta a conquistar para preservar a paz no mundo e a subsistência da terra (n.23).
O Papa faz neste contexto uma afirmação fundamental para se entender em que horizonte os diferentes temas são tratados aqui: “A fome não depende tanto de uma escassez material, como sobretudo da escassez de recursos sociais, o mais importante dos quais é de natureza institucional: isto é, falta um sistema de instituições que seja capaz de garantir um acesso regular e adequado, do ponto de vista nutricional, à alimentação e à água e também de enfrentar as carências relacionadas com as necessidades primárias e com a emergência de reais e verdadeiras crises alimentares provocadas por causas naturais ou pela irresponsabilidade política nacional e internacional. O problema da insegurança alimentar há de ser enfrentado numa perspectiva a longo prazo eliminando as causas estruturais”… (n.27).
Foi acentuado por vários comentadores que a tônica do documento é ética. Só que toda ética, se é radical, principia, como faz o documento, com uma análise da realidade humana tanto individual como estrutural e pressupõe uma antropologia. A frase citada revela também a antropologia subjacente ao texto papal, ou seja, a concepção de que o indivíduo humano já está sempre inserido num modo determinado de relacionamento com outros indivíduos que condiciona e determina no mais profundo suas vidas individuais. Compreender o ser humano como um ser essencialmente social e histórico implica compreender que a vida humana é um processo de condicionamento recíproco entre sujeitos e estruturas sociais.
A história humana se revela normativamente, então, como o campo de luta pela efetivação da dignidade humana o que significa efetivação de direitos. Enquanto tarefa histórica isto conduz ao enfrentamento de todo tipo de servidão, uma possibilidade permanente, que constitui a negação de seu caráter de sujeito e de diferentes formas sua redução a coisa. A humanização, portanto, é algo conquistado, o que pressupõe sujeitos ativos e conscientes, autores de seu próprio desenvolvimento, e passa pelo reconhecimento mútuo que se faz pela mediação de estruturas reguladoras da convivência entre sujeitos e sua relação com a natureza no sentido de superar todo tipo de instrumentalização e opressão.