Tocamos flauta e vocês não dançam
“Tocamos flauta e vós não dançastes,
entoamos lamentações e vós não batestes no peito” (Mt 11,17).
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS
De início, chama a atenção o comportamento que Jesus, através do evangelista, atribui às crianças. De fato, as palavras acima são colocadas na boca delas. Estão impacientes com seus colegas, pois eles se recusam a aderir ao momento presente. Recusam a alegria simbolizada no toque da flauta e recusam, igualmente, a tristeza que costuma acompanhar as lamentações. Afinal, o que querem? São incapazes de dançar e incapazes de “bater no peito”. Ambas as atitudes parecem incompatíveis com a espontaneidade e a transparência da criança. Esta, em geral, traduz no olhar, no rosto e no modo de agir aquilo que se passa em seu interior. Como é possível essa contradição?
Também chama a atenção o fato de essa passagem do Evangelho de Mateus ser utilizada pela liturgia do Advento. Tempo em que se prepara o coração, a casa e toda a existência para a vinda do Senhor. Tempo de conversão e penitência, sem dúvida, mas que tem como horizonte os festejos natalinos. Celebra-se o mistério da encarnação, a chegada do Emanuel, Deus-conosco! Luzes, música, anjos, pastores, estrela, reis magos, manjedoura, animais, gruta de Belém – tudo lembra a magia do Natal. O verbo de faz carne, “arma sua tenda entre nós”, mexendo com as recordações da infância, da família e da reconciliação com os parentes e a vizinhança. Um toque inefável de um Deus que, feito menino nu e pobre, débil e indefeso, visita a história humana. Um Deus que se humaniza para abrir o caminho a divinização humana.
Mas nem Jesus nem Mateus estão falando de crianças. O que está em jogo é o comportamento dos contemporâneos das narrativas evangélicas. Veio João Batista, um profeta austero, sisudo, homem do deserto, ainda vinculado ao predomínio do julgamento, próprio do Antigo Testamento, “que não come nem bebe”, e vocês dizem que “ele está com o demônio”. Veio o Filho do Homem, “que come e bebe”, caminha ao lado dos pobres, fala de misericórdia e compaixão, e vocês o acusam de “comilão e beberrão, amigo dos cobradores de impostos de dos pecadores”. Afinal de contas, que querem vocês? Não são capazes de se lastimar com a profecia de João, rude e enérgica, nem se alegram com a Boa Nova do Evangelho!
Talvez esteja aqui um dos males mais evidentes da Igreja atual, em grande parte de seus representantes, setores e instâncias: indiferença, inércia, omissão frente aos desejos e temores do povo, a seus fracassos e vitórias. Nas dores e angústias, incapaz de marcar presença; nas esperanças, lutas e sonhos, manifestando ceticismo e apatia. Uma Igreja que constrói uma redoma de vidro entre si e os embates das ruas, praças e campos. Retorna à sacristia, à atitude dogmática e doutrinária, à primazia da formação do clero, às exigências dos sacramentos, ao liturgismo desligado da vida, à solenidade de uma aparência triunfal, às exterioridades das manifestações religiosas, ao intimismo e espiritualismo ineficazes, ao autoritarismo hierárquico, ao abandono da “opção preferencial pelos pobres”, em alguns casos à aliança com o poder… Uma Igreja que ainda ergue um muro intransponível entre os de dentro e os de fora, os nossos e eles, os salvos e os perdidos!
Parece ter medo de sair a campo, de “sujar as mãos” nos desafios da história. Incapaz de dançar ao som da flauta, de participar das festas populares, de inebriar-se com a alegria que nasce e cresce até mesmo em meio à pobreza mais adversa. Incapaz, ao mesmo tempo, de entristecer-se com as tragédias que se abatem sobre pessoas, grupos e comunidades inteiras. Mais propensa a encerrar-se em debates sem fim sobre a origem e o carisma, seja da Igreja como um todo, seja de cada Congregação Religiosa. Tudo indica estar ela mais inclinada a visitar o berço e o museu, do que enfrentar os novos problemas da fronteira. Nada contra o berço e o museu, desde que esse passo atrás signifique uma busca das fontes, para beber a água do próprio poço, fortalecer o ardor missionário e avançar para horizontes desconhecidos. Enfim, não poucos representantes da Igreja, pessoas ou instituições, parecem viver das glórias do passado, cultivando uma espécie de narcisismo doentios, debruçada sobre o próprio umbigo, sem coragem de erguer a cabeça e seguir o caminho. O saudosismo do paraíso perdido toma o lugar da promessa e da tarefa de libertação.
Daí, não raro, sua postura cortês e polida, atenciosa e diplomática, mas sempre a certa distância dos fatos reais. Resulta que, diante dos conflitos, prevalece uma reconciliação camuflada e envernizada, não uma resolução corajosa e definitiva. Como as crianças da praça, nada de riso ou choro, nada de lágrimas ou festa. A neutralidade parece ser a norma: não vi, não ouvi, não sei, não conheço, não me meto em política, nosso campo de ação é de caráter puramente espiritual! Neutralidade extremamente cômoda, mas sempre suspeita. E facilmente usada e abusada por quem sabe manipular as forças sociais, religiosas ou não. Tudo ao contrário dos quatro verbos, na primeira pessoa do singular, atribuídos a Deus no Livro do Êxodo: “eu vi a aflição do meu povo, eu ouvi seu clamor, eu conheço seu sofrimento e eu desci para libertá-lo” (Ex 3,7-10). Onde foi parar a experiência desse Deus tão atento, sensível e solidário com as condições de vida e trabalho em que vive o seu povo? Ou então, voltando-se para o Novo Testamento, onde foi parar a figura de Jesus de Nazaré que “percorria todas as cidades e aldeias”, encontrava-se com as “multidões cansadas e abatidas” e por elas “sentia compaixão”, pois estavam como “ovelhas sem pastor” (Mt 9,35-38)?
Pular, cantar, danças como as crianças! Gemer, gritar, revoltar-se como os oprimidos! Numa palavra, viver o momento presente. Carpe die – diz a expressão latina, linguagem tão conhecida pela Santa Madre Igreja. Ao invés disso, esta prefere refugiar-se numa posição distante e hermética, enquanto o sangue da vida, quente e em franca ebulição, passa pelos botecos, feiras livres, padarias, açougues, supermercados e shopping centers; pelos ônibus, trens e metrô; pelos shows e estádios de futebol; pelas festas de aniversário, casamento, natal e carnaval… Raramente passa por nossas celebrações eucarísticas, muitas vezes frias, vazias formais e demasiadamente preocupadas com o ritual litúrgico.
Nem lágrimas, nem expressões efusivas! É preciso manter a tradição, a doutrina e a formalidade! Mas, onde fica o “caldeirão cultural” que vem da fusão das expressões negras, indígenas e populares? Isso nada tem a ver com a liturgia! Seu lugar é nas ruas e praças! E assim, como no testemunho de Jesus, ou a Igreja se torna itinerante, abrindo-se ao “outro, estranho, diferente”, e com isso se converte e se salva; ou permanece trancada no tempo e no templo, irremediavelmente impermeável à Boa Nova do Evangelho. Ainda a exemplo de Jesus, ou a Igreja tem coragem de manifestar sua sede e sai a buscar água até mesmo em fontes estrangeiras; ou se afoga e asfixia num doutrinarismo obsoleto e cristalizado, a-histórico e sem vida. Enfim, sempre de acordo com a proposta evangélica, ou a Igreja retoma um profetismo que, na expressão da Gaudium et Spes (nº 1), a aproxima “das alegrias e esperanças, das tristezas e angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem”, ou permanecerá debruçada à janela, “pra ver a banda passar cantando coisas de amor”, como lembra o poeta.
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