Tráfico de pessoas, migração e trabalho escravo
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS “provinciasaopaulo.com”
Uma das maiores chagas sociais que enfrenta hoje o mundo de economia globalizada é o tráfico de seres humanos. Além de envolver milhões de pessoas, é também uma das atividades mais lucrativas do crime organizado, juntamente com o tráfico de armas e de drogas. Aliás, traficar pessoas (ou às vezes órgãos humanos), drogas e armas são em geral atividades gêmeas.
1. Vítimas em terceiro grau
De início, é preciso deixar claro que tráfico de pessoas e mobilidade humana são duas realidades inextricavelmente entrelaçadas. As redes do tráfico põem em movimento, pelo mundo todo, uma quantidade imensa de pessoas. Nesse deslocamento de magnitude ampla, complexa e diversificada, desfilam tanto jovens e adultos quanto adolescentes e crianças. Dependendo dos fins em jogo, exploração do trabalho ou exploração sexual, predomina, respectivamente, o sexo masculino ou o sexo feminino. Em quase todos os países, atualmente, o tráfico e o fenômeno da migração formam duas realidades estreitamente interligadas. Quantas vítimas do tráfico viajam de forma dissimulada, escondidas sob a categoria de migrantes! Ambas essas realidades encontram-se, ainda, fortemente vinculadas ao “trabalho escravo”.
As aspas se devem ao fato de que a escravidão contemporânea diferencia-se da escravidão dos séculos passados, seja na antiguidade seja nos tempos modernos. Historicamente, o escravo era uma peça do senhor, o qual dele podia dispor com total liberdade de compra, venda e uso. No caso do Brasil, conforme não poucos estudiosos, a riqueza e o poder do fazendeiro eram medidos menos pela quantidade de hectares de terra de sua propriedade do que pelo número de peças com que podia contar. Seguindo de perto o raciocínio de José de Souza Martins (Cfr. O Cativeiro da Terra), enquanto o trabalhador era escravo, a terra podia ser livre. Quando começou a aumentar a pressão pela libertação dos escravos, criou-se a “lei de terras”, de 1850. Ou seja, se o trabalhador agora se torna livre, a terra deve ser escravizada. A terra passa a ter preço, o que impede que o negro em vias de ser liberto tenha fácil a cesso a ela. Vale lembrar que no mesmo ano, 1850, uma lei nos Estados Unidos fazia exatamente o contrário: liberava as terras aos pioneiros que quisessem nelas trabalhar.
Daí uma dupla concepção de trabalho, ainda de acordo com Martins. Enquanto para os negros alforriados trabalho era sinônimo de escravidão no eito, na mina ou no serviço doméstico, para os imigrantes que chegavam o trabalho representava a possibilidade de ascensão social. Os colonos italianos que se dirigiam às fazendas de café no estado de São Paulo, por exemplo, nutriam o sonho de adquirir um pedaço de terra com os ganhos dos serviços prestados aos donos dos cafezais. É preciso reconhecer que se tratava de um sonho raramente concretizado.
A Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, promulgada pela Princesa Isabel, representou o fim da escravatura no Brasil. Mas não o fim do “trabalho escravo” em sua concepção contemporânea. Atualmente, milhões de pessoas seguem trabalhando em condições degradantes, precárias e extremamente aviltantes, análogas ao trabalho escravo. As características são bem conhecidas: aliciamento à base de promessas ilusórias, posteriormente não cumpridas; confinamento por dívidas; jornadas exaustivas, às vezes chamadas de overdose; alimentação pobre, fria e insuficiente; condições insalubres e desumanas de moradia; transporte precário e perigoso, retenção do pagamento e dos documentos; perseguição ameaças com jagunços armados, muito parecidos aos antigos “capitães do mato”; eventuais assassinatos de fugitivos ou mortes por excesso de trabalho…
Convém não esquecer que, em menor ou maior grau, tais condições podem ser encontradas tanto no campo como na cidade. Na zona rural, só para citar alguns exemplos, é o retrato comum, por grande parte do território nacional, no corte de cana, nas carvoarias, na pecuária de leite e de corte, no desmatamento e plantio do pasto. Sem falar de outras colheitas e/ou safras, tais como o café, a laranja, o tomate, a mandioca, o abacaxi etc.. A mão-de-obra utilizada se compõe, via de regra, de migrantes temporários ou sazonais, incluindo não raro menores de idade. No mundo urbano, o cenário se repete, entre outros casos, na indústria têxtil de fundo de quintal, nos serviços domésticos mais diversos, na construção civil, nos grandes projetos, como também nos bastidores ocultos dos empreendimentos turísticos. Não é novidade para ninguém que o palco iluminado do turismo costuma esconder corredores sombrios onde personagens anônimos preparam o cenário para o desfile das celebridades. Tais personagens anônimos, em não poucos casos, são os estrangeiros, os diferentes, os que chegam de fora, os outros. Nos meios urbanos, as empresas e/o empreiteiras mesclam imigrantes latinoamericanos com migrantes internos, notadamente nordestinos.
2. Feridas que não cicatrizam
Três aspectos continuam desafiando os séculos e os esforços da luta pelos direitos humanos. O primeiro é que grande parte do imenso número de “deslocados” por motivos de trabalho, subjugados a condições análogas à escravidão e submetidas à exploração sexual, permanece sendo de origem negra. O estigma parece perseguir a raça que, ao longo do tempo, muitas vezes encontrou no trabalho não tanto a realização de um sonho, mas uma espécie de castigo que acompanha a cor da pele ou a marca da escravidão. Constituem verdadeiras feridas que insistem em não cicatrizar ou em reabrir a cada desafio e a cada circunstância histórica.
Outro aspecto desafiador é que cidade e campo, nesse tipo de migração forçada, não são gavetas fechadas e incomunicáveis. Ao contrário, muitos migrantes, conhecem ambas as realidades com uma frequência surpreendente. Após o trabalho numa determinada safra rural, por exemplo, podem partir para outro tipo de serviço no meio urbano, igualmente temporário, pesado e mal remunerado. Com efeito, uma boa quantidade de cortadores de cana que se deslocam dos estados do Nordeste para a região de Ribeirão Preto – SP, chamada “Califórnia brasileira”, terminado o corte de cana, se dirigem às cidades litorâneas onde passam o verão como vendedores ambulantes, camelôs, comercializando os objetos mais variados.
Um terceiro aspecto que hoje interpela tanto a sociedade quanto as instituições em geral refere-se ao crescente número de mulheres envolvidas no fenômeno da migração. Arrancadas da própria terra e da própria família, costumam ser utilizadas no trabalho temporário e degradante, a exemplo do que ocorre com o tráfico de seres humanos. Também aqui um novo estigma as persegue: no geral, recebem salários inferiores aos homens pelo mesmo tipo de serviço e pela mesma carga de trabalho. Não poucas são vítimas de ambos os estigmas apontados, a raça e o sexo. Isso para não falar de outra marca que também acompanha os migrantes, mulheres e homens, isto é, a origem. Pesa aqui o fato de serem, por exemplo, árabes no continente europeu, latinoamericanos nos Estados Unidos, hispano-americanos em São Paulo; asiáticos e africanos nos países do Primeiro Mundo, e assim por diante.
3. Origem, trânsito e destino
Que está por trás disso? Dois pólos se interligam no cenário mundial do tráfico de seres humanos, da migração forçada e do trabalho escravo. No pólo de origem, as condições precárias de sobrevivência, aliada à falta dos serviços essenciais como saúde e escola, por exemplo, favorecem o aliciamento por parte dos chamados “gatos”. Estes proliferam nas regiões subdesenvolvidas de um determinado país ou nos países periféricos em geral: Ásia, África e América Latina. Podem ser pessoas bem conhecidas, até compadres dos pais e padrinhos dos migrantes em potencial. Devido à abundância de carências locais e regionais, os jovens em especial se tornam presa fácil desses “gatos”, através de promessas de trabalho e futuro promissor. Quanto mais subdesenvolvido o lugar, tanto mais vulneráveis e expostos ao aliciamento se encontram as pessoas.
No caso brasileiro, um princípio histórico e estruturalmente perverso da economia costuma ser alimentado ao extremo. Ou seja, o direito à propriedade privada da terra ou ao ganho das empresas, movido pelo motor do lucro e da acumulação de capital, se sobrepõe à dignidade da pessoa humana, enquanto trabalhador e cidadão. Assim é que, historicamente, os modelos políticos priorizam o agronegócio, a empresa agro-industrial, a pecuária, o grande projeto – tudo isso em detrimento da pequena e média produção ou da economia familiar e solidária. Prevalece o que Caio Prado Júnior e Celso Furtado chamaram de tripé da economia brasileira: latifúndio, trabalho escravo e monocultivo de exportação. São chaves ou metáforas que servem não apenas para ler a história socioeconômica e política do país, mas para entender muitas decisões dos últimos governos. Basta citar como exemplos o latifúndio das telecomunicações e dos grandes projetos, a superexploração do trabalho e a sangria das commodities para servir aos interesses dos países centrais.
Quanto ao pólo de destino, como já vimos, os trabalhadores e trabalhadoras tirados do solo pátrio – árido, estéril e abandonado – se dirigem como um rio às regiões que demandam mão-de-obra fácil e barata, especialmente braçal. Como diria Karl Marx, trata-se de um imenso “exército de reserva” que não mora, acampa. Sempre pronto a deslocar-se ao menor sinal de trabalho, nem que seja por um pedaço de pão. Habitam em alojamentos, pensões coletivas ou porões sórdidos, sempre em condições de extrema precariedade, onde a dignidade humana se vê aviltada. Igualmente precárias são as condições de trabalho e saúde, não raro eliminando os mais frágeis e fragilizando os mais fortes. Desempenham os serviços mais sujos e perigosos, pesados e mal remunerados, “pau-para-toda-obra”, como se costuma dizer. No caso dos imigrantes em situação irregular, os “sem papéis”, tudo isso se agrava: a situação de clandestinidade lhes cerra todas as portas, impedindo o acesso aos direitos habituais de uma cidadania justa e digna.
Entre os dois pólos de origem e destino, está o trânsito. Neste, tanto o transporte como a hospedagem carecem das mínimas condições de humanidade. As promessas do “gato” de que os custos de viagem ficam por conta da empresa morrem logo na chegada. A partir daí, as dívidas começam a acumular-se, numa espiral galopante, fora do alcance dos parcos salários. Isto vale tato para os bolivianos da indústria têxtil em São Paulo, quanto para os peões aliciados para o desmatamento e a preparação de uma fazenda de gado. Os preços das mercadorias compradas no local de alojamento e trabalho são exorbitantes e, por mais que os salários lhes corram atrás, mal conseguem tocar seus calcanhares. O migrante ou imigrante torna-se um eterno endividado, sem jamais poder saldar seus débitos. Não é uma peça no sentido tradicional, não está atado ao senhor, ao eito ou à mina; mas permanece prisioneiro da ilusão envernizada pela eloqüência ou pelas ameaças do “gato”.
4. Combate e erradicação
Como fugir desse círculo fechado, dessa “gaiola de ferro”, para usar a expressão de Max Weber? Eis uma pergunta cuja resposta se bifurca em diferentes direções. Resta para nós o enorme desafio de combater e erradicar o trabalho escravo, o tráfico de pessoas e a migração forçada – três lados de um problema único e extremamente complexo. Cabe o empenho das organizações não governamentais, dos movimentos e pastorais sociais, das entidades de direitos humanos, das campanhas de libertação, das iniciativas de Igrejas em geral, dos órgãos do governo, tais como Ministério do Trabalho, Ministério Público e Polícia Federal. Cabe um enorme mutirão pela liberdade e pela dignidade do ser humano, com direito ao trabalho e à cidadania onde quer que se encontre.
Combate e erradicação são as palavras chaves desses esforços sem tréguas. Aqui, mais do que em qualquer outro campo de luta, as ações devem ser integradas. A regra é uma só: unir forças, estabelecer parcerias, costurar redes de apoio e solidariedade. As atividades devem ter alcance simultaneamente local e global, sempre respaldadas por organismos de “costas largas”, pois as ameaças e os riscos são muitos. Velada ou explicitamente, o crime organizado não tem escrúpulos em liquidar pessoas e comprar o silêncio e a conivência das autoridades.