Viva São Romero!!!

Francisco de Aquino Júnior

Trinta anos se passaram do martírio de São Romero de América, pastor e mártir nosso: 24 de março de 1980. Muitas pessoas, comunidades, organizações e instituições em El Salvador, em toda América Latina e no mundo inteiro celebram sua fidelidade e entrega radicais ao Deus de Jesus na fidelidade e entrega radicais aos pobres de El Salvador – “a imagem do Divino traspassado”(1), “o povo crucificado, como Jesus, o povo perseguido como o servo de Javé”(2).

Mas, nem todas o celebram do mesmo modo nem com o mesmo interesse. Por esta razão, é de fundamental importância explicitar o que se celebra e quais são os reais interesses que estão por trás dessa celebração: trata-se de celebrar um passado que passou (cadáver/defunto), por mais glorioso que tenha sido, ou um passado que continua vivo e atuante no presente (ressuscitado)? Trata-se de sepultá-lo definitivamente no passado, com as pompas e solenidades das grandes cerimônias, ou de historicizá-lo profeticamente em nossa situação atual através de nossa vida/práxis?

Já em 1988, escrevia Ignacio Ellacuría a propósito da memória de Oscar Romero: “Há uma memória que é mera recordação do passado; é uma memória morta, uma memória arquivada, uma memória do que já não está vivo. Há outra memória que faz o passado presente, não como mera recordação, mas como presença viva, como algo que sem ser mais presente, tampouco é totalmente ausente porque, definitivamente, é parte da própria vida; não da vida que foi e passou, mas da vida que continua sendo. Com dom Romero e sua memória, a pergunta fundamental é de que memória se trata: uma memória morta ou uma memória viva, a presença de um cadáver ao qual se venera ou a presença de um ressuscitado que interpela e revigora, alenta e dirige [..]. Ninguém esquece dom Romero, mas nem todos o recordam como ressuscitado e presente”(3). E muitos o querem definitivamente sepultado, ainda que nos livros e/ou nos altares…

Sem dúvida, é bom e mesmo necessário falar de Romero -sua conversão, seu serviço aos pobres, seu ministério pastoral, sua firmeza e fidelidade proféticas, sua perseguição, seu sofrimento, seu martírio etc.-, recordar e reproduzir suas homilias dominicais, estampar sua imagem em camisetas e quadros e nas igrejas, cantá-lo nas celebrações etc. Mas o que importa mesmo é atualizar sua missão profética em nossa vida e ação pastoral. Não basta reler suas homilias e cartas pastorais, é necessário reler os sinais dos nossos tempos com o mesmo espírito evangélico com o qual Romero interpretava sua realidade e reagia ante essa mesma realidade, denunciando com clareza e radicalidade as atuais violações dos direitos humanos e favorecendo com todos os meios disponíveis as lutas concretas atuais pela transformação da realidade no dinamismo do reinado do Deus de Jesus de Nazaré.

Este é o modo autenticamente cristão de celebração/memória do martírio de Romero: atualização em nossa vida e ação pastoral de sua entrega a Deus na entrega aos pobres e oprimidos deste mundo. E é deste modo que a esperança, o desejo e a promessa proféticos de Romero se fazem realidade: “se me matam, ressuscitarei no povo salvadorenho”; “um bispo morrerá, mas a Igreja de Deus, que é o povo, não perecerá jamais”(4). É na denúncia cotidiana do pecado que escraviza e mata e na luta constante pela instauração do reinado de Deus neste mundo que Jesus, o Senhor, e Romero, seu discípulo fiel, se fazem presente entre nós.

Celebrar Romero é, portanto, unir-nos a ele, fazendo nossa a luta contra os poderes do mal e pela realização do reinado de Deus, cujo critério e cuja medida são sempre as necessidades da humanidade sofredora: “são os pobres os que nos dizem o que é o mundo e qual é o serviço eclesial ao mundo; são os pobres os que nos dizem o que é a ‘polis’, a cidade, e o que significa para a Igreja viver realmente neste mundo”(5). Só assim poderemos celebrá-lo evangelicamente e gritar sem hipocrisia: Viva Romero!!! Pois nosso grito não será mais que a proclamação profética de que Romero vive entre nós e vive, precisamente, através de nosso compromisso com a Causa dos pobres.

Viva São Romero!!! Que ele viva!!!
Para a “glória de Deus” que é o “pobre que vive”!

Notas:

(1) ROMERO, Mons. Oscar Arnulfo. Su pensamiento I-II. San Salvador: Criterio, 2000, 98.

(2) IDEM. “La dimensión política de la fe desde la opción por los pobres”, in SOBRINO, Jon – MARTÍN-BARÓ, Ignacio – CARDENAL, Rodolfo. La voz de los sin voz: la palabra viva de Monseñor Romero. San Salvador: UCA, 2007, 181-193, aquí 188.

(3) ELLACURIA, Ignacio. “Memoria de monseñor Romero”, in Escritos Teológicos III. San Salvador: UCA, 2002, 115.

(4) ROMERO, Mons. Oscar Arnulfo. “Entrevista”. Apud. SOBRINO, Jon – MARTÍN-BARÓ, Ignacio – CARDENAL, Rodolfo. Op. cit., 461.

(5) IDEM. “La dimensión política de la fe desde la opción por los pobres”, in op. cit., 185.