A população e a rua
Artigo do Pe. Julio publicado na Folha de S. Paulo em 27/09/2020
A população em situação de rua cresce em todo o Brasil e nas grandes cidades do mundo. O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) não faz o censo dos que sobrevivem nas ruas por considerá-los sem domicílio. Já o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) aponta que há 220 mil pessoas pelas ruas das cidades do país.
A população em situação de rua é heterogênea e necessita de propostas que comtemplem a diversidade humana. Respostas únicas, como centros de acolhida, não respondem mais às reais necessidades. Precisamos ampliar respostas que priorizem a autonomia, a não burocratização e a não institucionalização. Nesse sentido, a locação social e o acesso às políticas de moradia são fundamentais. O binômio moradia e trabalho são inseparáveis.
As respostas das chamadas políticas públicas têm sido ineficazes e pífias por serem insuficientes e cerceadoras da autonomia. É comum ouvir dos administradores públicos: “Há vagas sobrando!”. As autoridades esquecem que quem precisa de vagas são carros. Pessoas precisam de lugar! Lugar com significado, pertencimento e autonomia.
As cidades são muitas vezes governadas pela especulação imobiliária. As pessoas são expulsas das regiões centrais, invisibilizadas, reprimidas e tratadas com repressão e violência. A propriedade e a especulação ferem e matam.
Conviver com a população em situação de rua é resistência e denúncia da opressão e da banalização da miséria a que são submetidos. A vida, em todas as dimensões, é negada e reprimida. Não se levam em conta os sentimentos, as emoções. A sexualidade é negada, e a diversidade, reprimida e moralizada.
Respostas humanizadoras são prementes! Não aceitamos a zeladoria urbana que considera as pessoas como lixo, que furta seus poucos pertences. Não aceitamos segurança pública racista que sempre os trata como suspeitos.
A população em situação de rua não é toda dependente de álcool e de outras drogas. Muitos padecem de sofrimento mental, são pessoas que perderam quase tudo na vida e esperam resistir e superar desafios imensos.
Todos os dias me pedem trabalho, querem ser reconhecidos. Precisam ser reconhecidos e tratados com respeito e humanidade.
Refugiados urbanos, expulsos e indesejáveis. Dizem sempre: “Leve para casa!” Queria que fossem para uma casa. A casa deles, onde tivessem a chave, a cama, a mesa e os alimentos.
As pessoas que sobrevivem, que sofrem e morrem pelas ruas nos questionam a construir uma cidade mais humana, que tenha lugar para todos.
Não podemos idealizar nem demonizar, mas humanizar. Nem flores nem bombas. Mas, sim, respostas humanas e dignas!
Neste tempo de pandemia, precisamos refletir e nos comprometer a olhar com compaixão o sofrimento dos descartados, que não têm sequer onde lavar as mãos, onde dormir com privacidade e proteção e praticar o isolamento social.
Não são as pessoas em situação de rua que adulteraram álcool em gel nem superfaturaram respiradores durante a pandemia. Muitos ficaram abandonados pelas ruas e praças à espera de socorro —que, em vários lugares, tardou a chegar. As redes hoteleiras poderiam ter sido mais solidárias e acolhedoras.
Os consultórios de rua deram exemplo e testemunho de presença, como na cidade de São Paulo. Aqui, é comum dizerem: “Há mais casa sem gente do que gente sem casa”.
As ruas não são lugares para ninguém viver —e muito menos para morrer! Que os sofrimentos, ameaças e ataques destes tempos nos ajudem a lutar para sermos fiéis e não desanimarmos na busca de mais fraternidade e partilha.
A renda mínima será uma boa resposta em todo o país, mas que poderia ser iniciada em nível municipal para que as desigualdades desapareçam e as pessoas em situação de rua cresçam em esperança e possibilidades.
Reprimir e criminalizar é pouco eficiente, além de desumano, e não dignifica ninguém. A coragem de considerar fraternalmente a população em situação de rua é um desafio para todos e todas que se consideram humanos e dignos de credibilidade.